E se durante o apocalipse eu amasse você?
Para W. Mond
Estive dormindo demais, dormi muito e, enfim, relaxei e parei de pensar. Parei de lutar contra meus instintos. Minha mente, calma, me concedeu as rédeas da razão. O abismo do medo foi atenuado. Quando o amor chega, nos resta acolher, sem controle. Eu não esperava ninguém. Eu me tornei feliz, me determinando a ser feliz. Estava vivendo, sem pensar que sofria de vil expiação. Não! Um olhar de amparo a si própria é essencial. O mundo é suficiente perverso e egoísta para lidar com a solidão do outro. Olhava para mim, então, com bondade e, com serenidade, resolvi rezar outros credos, provar outros vinhos e mergulhar em outros mares. Nesse distanciamento solene, em que me sentia perfeitamente unida ao meu mais profundo eu, no meu momento mais fecundo você aconteceu. Mergulhada no mais perfeito encanto de estar totalmente satisfeita com minha própria companhia, fui obrigada a me expor. Com a cabeça fora da água, além da profundidade, espantada e de repente, olhei para você.
Estávamos sozinhos, mergulhados em águas profundas. Agora, juntos, navegamos sob o azul escuro do mesmo céu. As constelações são as mesmas, o sol se põe no mesmo lugar e, à noite, a lua costuma sorrir na nossa direção. A lua mostra que a cada fase da nossa rotina se expande ou se retrai, se aproxima ou se afasta ou, ainda, míngua ou cheia, mas sempre provendo de abundância uma união impensável. Impensável para quem não sabe o que diz.
Nossos filhos, pai, irmãos, nossos verdadeiros e poucos amigos, todos crendo na mesma nau, olhos apontados para o cruzeiro rumam firmes para nós.
Mas o mar nem sempre está manso e a grande tormenta surgiu, também, de forma assustadora. Acompanhando a carruagem de um Anjo, a tormenta mostra sinais de pecado eterno. Talvez a humanidade ainda possa ser salva, talvez não.
Tempos esquisitos em que não se vê ninguém próximo a ninguém. Os que temiam ao amor e à felicidade desaparecem, nas ruas só se ouvem os pássaros e alguns sussurros. Lidamos com nossos próprios fantasmas. Não podemos respirar sem filtros, abraçar sem medo, beijar sem condenação. Todos merecem estar sós. Sós como éramos sós, como éramos antes de nós. A distância os salva. O espaço se agiganta e as ruas se tornam sozinhas de pessoas. O mundo inteiro silencia para deixar o anjo passar. A febre não tem critério. Não há pecadores suficientes para tantas mortes. Os mortos salvam os vivos de suas culpas. E são tantos pecados. Tantas dores impunes. Choram os homens e as mulheres. As crianças tristes e puras não estão impunes e se amontoam irritadas entre as paredes frias e solitárias dos apartamentos. Os pais choram. As mães sofrem caladas. Infeliz de quem está velho e precisa morrer sozinho. O quanto é cruel esse anjo que, com ira da humanidade, prefere uma serpente aos homens. Pobres homens. O que tem ainda a ser resgatado para que parem de chorar. O que nos espera depois de tudo, ninguém sabe, nada. Nem os filósofos, nem os sociólogos, nem os estudantes, nem os cientistas. Apenas, não sabem.
Sabemos que queremos mais jardins, para abrigar as flores nas primaveras e nos embriagar do tédio. Queremos mais neve no inverno, para que derreta e venha encher de águas cristalinas os lagos no verão. Talvez, mais chuvas no verão, para refrescar a pele e nutrir as lavouras. Sabemos que queremos outonos mais frescos e cheios de sol, para colorir nossas janelas com o mundo amarelo de Van Gogh. A vida prevalece perto de nós, com a música e o céu azul. O céu permanece azul. Nossas janelas se abrem e ignorando almas primitivas brincamos de velejar no ninho. Estamos sozinhos acompanhados. Somos grandes porque somos um só. Conosco estão todos. Somos amor e somos humanos. Um apocalipse não nos aterroriza. Nos aproxima, nos salva, porque do amor somos feitos e do amor somos encantados. E por amor, ficamos juntos. Como é bom observar você dormindo ao meu lado. Você é meu gênesis!
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