A busca
A terra já havia girado quase meia volta. Olhei pela janela da cozinha, que dá para o pátio interno do meu prédio e uma neve rala descia em câmara lenta, sinuosamente, salpicando a velha castanheira que sobrevive de forma solitária entre as janelas. A tarde vinha gelada.
Liguei a cafeteira e tentei escutar algo doce no rádio. As músicas eram confusas e as notícias não me interessavam. Acendi um cigarro. A neve dançava com o vento agora, em movimentos da esquerda para a direita, como o embalo de um berço. Meus pensamentos estavam desordenados. Uma fatia de pão pulou da torradeira. Outra música, e o piano era dedilhado com sintonia. O vento aumentava, os flocos de neve agora se chocavam contra a janela da cozinha. Passei mel na torrada e tomei um gole de café. Resolvi inspecionar os quartos. A xícara me acompanhou na volta pelo apartamento. Ninguém dormia ali mais.
Olhei através das vidraças da sala de jantar e a rua estava bem agitada, pessoas em direção à estação do metrô passavam apressadas, tentando se proteger do vento. Terminei o café e peguei o sobretudo no cabide. Precisava sair. Procurei pelas botas no vestíbulo, coloquei o gorro e desci as escadas. Estava tudo desligado, e deixei o apartamento em silêncio. A porta pesada do prédio teimava em ficar fechada, suplicando para que eu não a abrisse. Teimei e recebi como um soco o vento gelado. A pele do meu rosto era golpeada pela umidade gelada e estranhos cristaizinhos delicados insistiam em saltitar pelas minhas pálpebras. Acelerei o passo.
A neblina cobria a paisagem não muito distante. Alcancei a ponte para chegar na estação de trem, não consegui avistar a torre de tv à esquerda. A névoa, o vento e a neve prevaleciam emoldurando Berlim. Meus passos firmes quebravam a fina camada de gelo da calçada e o caminho se tornava pesado e triste.
Onde eu iria? Caminhar sem rumo nessa fênix reconstruída, deleite de principiante, amargor de veterano, testemunho de tempos escusos, passados reconstruídos, futuros incertos, coloridos errantes.
Cinco minutos depois, o trem rompia por sobre os trilhos, me intimava a decidir o meu destino com pressa. Pulei para dentro do vagão do S-Bahn em direção à estação Friedrichstraβe. Desci, peguei o S5, algumas paradas e desci em Tiergarten. Subi os degraus da estação e o tempo estava seco. A neblina estava cedendo e as árvores do parque se mostravam uma a uma para mim. Sabiam que estavam sendo observadas. Esse jardim enorme, onde caçavam os reis, me conforta.
O frio me protege, ninguém mais além da minha própria solidão. Posso caminhar entre as árvores desinibida. A grama congelada. Os monumentos. Os canteiros sem flores. Todos elfos desconfiados da minha excursão despropositada numa tarde de inverno. Invadia um lugar sagrado. Sem sol, sem brilho, sem luz. Sinto a leveza das almas que ali descansam e, admirando a beleza imaculada de um arbusto, sou surpreendida por um coelho incauto. Tentei alcançá-lo, acabei no recanto inglês, nada funciona hoje. Sigo o meu caminho. A cada curva, uma vida escondida. De quem passou, de quem passa ou vai passar por ali. A magia de estar num tablado em que o cenário se move a cada passo meu. Vejo cristais no lago, meu rosto não apareceu na superfície. O inverno ocultou o espelho e a água. O lago estava paralisado. Fotografado. Sem vida.
A escuridão que aos poucos caía quase me expulsando do parque e eu não me importava. Precisava andar mais. As horas corriam, mas eu não me importava. Abria-se o túnel do tempo e os cavalos e os cães passaram correndo por mim, afugentando uma raposa vermelha. No caminho de volta ao recanto inglês, árvores tombavam diante de mim, incendiavam minha mente com as granadas e bombas que explodiam por ali. Mais adiante, um grupo de mulheres determinadas cortavam uma antiga faia para aquecer casas e crianças. A cena me assustou e acelerei meu passo. Goethe zelava pelo parque, me curvei ao monumento. Estava sendo observada. Um pássaro fazia um ruído qualquer por ali.
Era hora de voltar e minha caminhada já me deixava cansada. Voltava devagar para tentar guardar todas as imagens. Das faias, dos carvalhos, das alamedas frias, dos monumentos e da fauna que ainda ansiavam pela primavera. O parque guarda a história da cidade, mas para mim ele é minha testemunha. Testemunha de momentos. De busca de conforto ou apenas refúgio. Busquei esse parque em meio a vendavais ou nas mais coloridas primaveras. Tem um pouco de mim nos ninhos e tocas escondidos. Nas flores que aparecem de repente e nas folhas que se pintam de dourado no outono. Nos galhos dos grandes carvalhos marquei minhas digitais e com eles consegui adquirir a sabedoria das estações. As cores e os cheiros do Parque mudam conforme o humor da natureza, que nunca falha. A vida muda e surpreende a cada estação, a cada mudança da lua, a cada virada de década. Não somos sempre as mesmas pessoas. Morremos para renascer de novo a cada dia. Como os carvalhos em cada estação. Precisava seguir em frente.
O tempo vai girando o relógio e vislumbro o Portão de Brandemburgo. Ele me faz sentir pequena e, rigoroso, vira a quadriga de costas para mim. Quero entender o que procuro. Para onde aquela mulher está indo, com tanta pressa com quatro cavalos. Sigo atrás dela.
Não havia ninguém na Praça, o Portão já estava pálido, nem mesmo o espírito de Napoleão circulava mais por ali. Apenas eu, a quadriga e a umidade da cidade. Sentia frio agora, muito frio. Devo voltar para casa. Já sabia quem era eu.
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