A casa austríaca
A casa de três pisos pintada de amarelo e adornada com janelas brancas, cada uma delas com amplos balcões de madeira escura, fica bem no centro de uma ladeira, à esquerda de quem desce. No pequeno jardim crescem rosas vermelhas e pequenas flores rasteiras. No inverno, entretanto, apenas os galhos das duas castanheiras ficam à mostra. Subi os cinco estreitos degraus do alpendre e me dirigi à porta pesada que abre para rua. Com um alívio, senti a temperatura do aconchego. O outono se recolhendo e o frio já bem intenso. O vento soprava com força e descia do topo das montanhas açoitando meu rosto. Logo na entrada, à direita, no pequeno e escuro vestíbulo, botas velhas e sujas aguardavam impacientes a chegada do inverno para andar nas ruas de Salzburgo. Abandonei meus sapatos ali e entrei na cozinha onde larguei minha mochila no chão e pus uma chaleira cheia de água para esquentar. Na escadaria em frente, os degraus de madeira antiga não produziam nenhum ruído, a casa estava vazia. Nem os gatos apareciam para me saudar.
A viagem me deixou mais melancólica. O trem veio deslizando de forma silenciosa pelos trilhos e, enquanto trespassava os lagos e as montanhas, as lembranças varriam minha mente. Recordações vinham e iam na mesma velocidade que as paisagens através da janela. Nas florestas ao largo, conseguia imaginar os pequenos esquilos e coelhos cavando tocas, armazenando sementes.
Ao se aproximar de Salzburgo, o condutor acelerou mais e minha vida em Viena restava selada, fazendo parte de um passado de pouco mais de duas horas, que não fazia mais sentido.
No final da Segunda Guerra Mundial, muitas casas e as pontes que atravessam o rio Salzach haviam sido destruídas pelos bombardeios aliados. Os americanos e os refugiados chegavam a cada dia, mudando a paisagem da cidade. Nossa casa pertencia a uma família de comerciantes que, de um dia para outro, assistiu seus três filhos entrarem num trem e partirem com outros soldados arregimentados pelos nazistas desde a anexação pela Alemanha, o “anschluss”. Daquela estação, nunca mais voltaram. A cidade estava parcialmente destruída e a loja de roupas também não ficou de pé. Em meados de 1945, um pai destruído por uma tragédia ofereceu a casa ao meu avô para conseguir sobreviver longe da cidade, que um dia abrigou uma família feliz e próspera. Meu avô era um pequeno camponês dono de uma propriedade rural nos arredores. E, graças a economia de uma vida, ele conseguia com as vacas sobreviventes, fornecer leite e algum queijo minguado aos vizinhos. Antes da guerra, era um cliente leal da loja e comprava roupas para família sempre que necessárias. Daí, surgiu uma amizade fraterna e, naturalmente, o dono da casa socorreu-se do meu avô e vendeu para ele a casa. Nunca mais se ouviu falar daqueles pais que deixaram a chave embaixo do tapete em frente a porta e, sem olhar para trás, atravessaram os Alpes em busca de paz. Se é que isso era possível.
A casa era confortável e considerando o número de cômodos disponíveis para uma família pequena, o novo proprietário teve a ideia de alugar, sem ansiar por grandes vantagens, para pessoas que chegavam todos os dias na cidade. Minha avó ajudava na pensão, suprindo de forma barata, as necessidades de habitação e alimentação de famílias que amanheciam em Salzburgo vazios de perspectivas. As pessoas ficavam muito aliviadas e conseguindo trabalhar, imediatamente, contribuíam, agradecidas, com as despesas.
O tempo passou, a guerra foi cicatrizando e minha avó viúva conseguiu transformar a pensão em hospedaria para turistas que vinham desfrutar de uma Salzburgo em expansão.
Neta da guerra, pertenço à geração que percebeu os conflitos de forma muito distante. Mas, desde criança, adorava a casa recheada de histórias e que havia testemunhado tantos acontecimentos importantes. Muitas vezes, jurava que via os fantasmas daqueles meninos que foram lutar na guerra e corria assustada para cozinha onde me surpreendia com minha avó, entre bolos e tortas, falando sozinha e rezando pelas almas perdidas. Nesses momentos, eu ficava observando aquela senhora bochechuda e tentava adivinhar tudo o que ela havia presenciado da cidade aos pedaços, dos sofrimentos dos amigos, da fome e do frio que a maior parte das pessoas na Europa sentiu e jamais esqueceria.
Eu não era uma boba alienada. Tornei-me, apenas, uma adolescente que subia e descia os terrenos inclinados da cidade, sem preocupações ou pensamentos mais complexos, com poucas amigas e dois gatos que me faziam companhia nos momentos de tédio.
A família já estava bastante reduzida. Meu tio mais velho havia falecido e, por motivos que não lembro, o tio mais novo havia se mudado da cidade com a mulher. Minha avó faleceu bem velhinha e minha mãe passou a administrar sozinha a casa, que ainda servia de pouso para os viajantes, que chegavam, aos poucos, com idiomas e costumes diferentes.
Eu sempre adorei a cidade no natal. Apesar do frio intenso, fica mais alegre e mais iluminada. Os turistas enchem as ruas e trazem na mala a curiosidade pelo berço de Mozart e pelas feiras. O tédio não vinga nessa época e eu aproveitava tudo que Salzburgo oferecia em dezembro. O sabor das castanhas assadas e o perfume do vinho quente adicionavam mais fome de vida em mim. Não eram raras as noites em que eu chegava tonta em casa depois de derrubar algumas canecas de vinho com rum, o que deixava minha mãe doida. Subia muito devagar os degraus do alpendre, mas o crac crac crac da neve roçando nas botas delatava, irremediavelmente, a minha chegada furtiva. E mesmo sendo castigada, como de hábito, com bolsos vazios, voltava nas feiras apenas para observar as luzes, ouvir as músicas e admirar os olhares estranhos que vagavam pela cidade nesses tempos.
Foi nessa atmosfera fria e colorida que conheci Andreas de Viena. Conversava com duas amigas, quando ele se aproximou pedindo informações sobre uma rua e verbalizando um sotaque de quem não era nascido na Áustria. As ruelas da cidade antiga confundiram o sentido de direção daquele homem de ombros largos, elegante e de lindos olhos azuis. Havia um sorriso incomum e sedutor no rosto e uma alegria desmedida para um cidadão germânico. A noite já estava bem adiantada. Levemente embriagada, minha timidez era inexistente. Não tive o menor constrangimento em me apresentar, apesar de Andreas não demonstrar muito interesse. O real interesse dele era retornar imediatamente para o apartamento onde estava com amigos e demonstrava incomodado com a desorientação. Percebi a personalidade escorregadia e pedi mais uma caneca de vinho. Ofereci a ele o vinho de forma a dar boas-vindas ao turista interessante.
A reação foi engraçada. Totalmente desconcertado, ficou trêmulo e por pouco não provocou ferimentos graves por queimadura. Metade do conteúdo da caneca manchou a neve que estava recolhida na calçada. O acolhimento francamente afetuoso ao qual foi exposto destronou a segurança aparente do viajante perdido.
Obrigado a permanecer conosco, como se esperava de um cavalheiro saxão, até o vinho desaparecer da caneca, começamos a conversar.
Naquela noite eu soube o que é sentir paixão. Nunca mais tive sossego. Passamos a nos encontrar todos os dias na semana que ele estava na cidade. Quando ele se foi, passei todos meus dias e noites olhando para o céu, para as montanhas, para a floresta e pensando o que ele poderia estar fazendo. Sonhava acordada todos os dias, abria meu computador de cinco em cinco minutos esperando algum sinal ou mensagem que me fizesse sonhar mais e mais.
E assim foi meu inverno naquele ano, dos meus vinte e um anos.
Até que chegou abril e os olhos azuis de Andreas apareceram na porta da nossa casa, colorindo mais minha vida do que o jardim bem tratado da minha mãe. Chegou em férias, hospedou-se por vinte dias e foram os vinte dias mais intensos das nossas vidas…da minha, da minha mãe e de Andreas. Para minha surpresa, o novo hóspede conseguiu seduzir a rigorosa austríaca em pouco tempo e mal pude acreditar quando assisti os dois sentados na mesa da cozinha sorrindo um para o outro, cada um com uma xícara de chá acompanhada de fatias de bolo bem servidas. Por minha insistência, ela conseguiu ser generosa e incluir o café-da-manhã na hospedagem. Assim, nossos dias começavam com cheiro de café em família. Aproveitamos cada minuto de cada dia. Muitas vezes, minha mãe era incluída nos nossos passeios, não demorando muito tempo para criar uma admiração mútua entre Andreas e a dona da casa austríaca. Minha mãe ficou tão encantada, que muitas vezes ficava difícil dividi-lo. Eu empurrava Andreas para fora de casa e deixava minha mãe falando sem parar.
Quando Andreas voltou à Viena, me levou junto na bagagem, com franca aprovação da minha mãe para que eu tomasse um novo rumo na vida. Meu guardião tratou de arranjar uma colocação para mim em uma escola infantil. Conseguiu recomendações com uma amiga e o trabalho caiu de paraquedas na minha vida. O PHD em informática de Andreas facilitou à rígida senhora confiar a filha. E eu, seduzida pelos dotes físicos, elegância e serenidade do pretendente fui muito feliz viver em uma cidade nova e grande. Nunca havia saído de Salzburgo e a perspectiva de ser apresentada para uma realidade tão distinta da minha era algo que nenhuma moça da minha idade resistiria.
Andreas era de Hamburgo e havia estudado na Inglaterra. Ao retornar para Alemanha, depois de formado conseguiu vaga numa empresa de informática em Viena. Absolutamente tudo nele me encantava. Era articulado, culto e não parecia temer nada, nem ninguém. Enquanto eu, terminei o curso de magistério e trabalhava numa rede de lojas de decoração. A possibilidade de exercer minha profissão, sob os cuidados de um lindo arcanjo sem asas foi a fórmula exata para que minha mãe se conformasse com a solidão e me presenteasse com a liberdade.
Nosso endereço em Viena era na Marztrasse, vizinhança de maioria turca, muito agradável. Nosso apartamento era pequeno e confortável. De manhã cedo, saímos juntos para pegar o metrô em direção a Schweglergasse. Eu descia duas estações antes dele e à noite nos encontrávamos em casa.
Nossa vida era simples e eu a cada dia me apaixonava mais por ele e pela cidade. Viena era exuberante, alegre e cheia de charme. Não tínhamos uma vida social intensa, mas frequentávamos concertos ao menos uma vez por mês e as tardes de domingo eram reservadas para os cafés, especialmente o Café Demel. Andreas adorava os chocolates e tortas de lá. À noite, enquanto Andreas lia ou estudava eu cuidava da nossa casa ou apenas ficava de canto, admirando por horas aquele homem lindo que compartilhava a vida comigo, como um presente inacreditável que Deus havia me proporcionado.
Ele era perfeito, organizado, limpo e gentil. Nada ficava fora de lugar e eu aprendi a me policiar com a louça na pia e a roupa na máquina de lavar. Não havia muitos enfeites no apartamento, poucas plantas e alguns quadros com paisagens antigas na sala, Era o suficiente para dar um clima de lar.
A escola infantil era pequena e eu era responsável por uma turma com dez crianças de quatro anos. Os pais eram bastante jovens e era fantástico perceber o progresso cognitivo dos pequenos. Tudo ia muito bem.
Em novembro, as férias de outono chegavam ao fim. Cheguei em casa mais tarde depois de uma reunião na escola e Andreas estava deitado no quarto descansando. Não quis importunar e fui direto à cozinha preparar uma salada para o jantar. O celular de Andreas estava esquecido na mesa da sala. Ouvi um bipe e minha curiosidade ultrapassou os limites da boa educação. Algo intuitivo, sem suspeita alguma. Não hesitei em conferir a mensagem:
Querido, adorei ouvir sua voz ontem. Muita saudade. Venha para o aniversário da pequena Laura, quero ver você. Beijos, Ingrid.
Andreas, com seus trinta e quatro anos bem vividos, havia deixado um relacionamento mal-acabado em Hamburgo. Levei um soco no peito, daqueles quando se ingere uma dose de conhaque bem forte. Faltou o ar e quando me refiz do espanto e dos ciúmes dolorosos corri para o quarto. Nada há a explicar quando em poucas palavras já está tudo explicado. Nada há a reparar ou a voltar atrás. A vida sonhada por mim tomou o rumo que deveria tomar da forma mais violenta e egoísta.
Não houve da parte dele qualquer simulação de constrangimento ou tentativa de amenizar uma verdade exposta de forma tão explícita.
Andreas segurou minha mão e escutei:
– Sinto muito Ane, não pude evitar. Tenho uma filha. Telefonei e senti vontade de reencontrá-las. Vou para Hamburgo amanhã à tardinha. Volte para sua casa.
Na manhã seguinte, deixando minha virgindade e a pouca dignidade que me restava em Viena, fui para estação em busca do trem rumo à austera, fria e ingênua casa austríaca.
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