O vapor abandonava a xícara perfumada e, com olhos vazios, acompanhava os desenhos que se desenrolavam em imagens. Imagens que não conseguia evitar.
O cheiro quente da canela adocicada a enfeitiçava e, devagar, descia o dorso da mão esquerda pelo pescoço tentando anestesiar lembranças.
Naquele momento, o tempo estava parado e as coisas pareciam estar em câmera lenta. O calor subia aos mais puros sentidos. Havia só ela e a xícara de chá.
Beber chá é divino e demanda liberdade de sentir, emoção da qual sempre se privava. O medo das lembranças não permitia outra forma de se mostrar.
Tinha que ser daquele jeito, um ato solene. Um pequeno descuido, um detalhe e o ritual se destruía. As folhas tenras, a temperatura amena e o açúcar com parcimônia. A xícara não importava, apenas a mistura tinha que ser perfeita, uma fórmula prescrita com sabedoria. Uma oferenda dos deuses, um doce pecado. Sorvia cada gole sem pressa, deixando escorrer pela garganta, embalada pelos desenhos do vapor. A pequena colher, ora mais nervosa, ora mais tranquila agitava a mistura quente. Sem exageros, a colher era o limite do prazer porque, por vezes voluntariosa, deixava-se agitar demais e esfriar o luxo do instante.
O instante em que estava dividindo com ele aparecia diante dos olhos a cada gole, a cada resvalada da colher dentro da xícara.
Era um corpo perfeito, Davi de Michelangelo. De forma matemática, os músculos eram distribuídos equilibradamente, sem excessos, a medida certa capaz de homenagear a mais bela das criaturas. Um bíceps protetor, artérias dilatadas, os cabelos macios e o peito largo envolviam mais que o corpo. Era corpo e espírito. Entrega total, sem fugas, sem defesas, sem fronteiras.
O chá não estava na metade da xícara e as sombras, aos poucos, iam se revelando na névoa quente. Tudo ficava tenso. Ficava angustiada e mexia de novo e mais rápido com a colher. O beijo era cúmplice dele, não conseguia se libertar mais. Vencida, nada mais podia fazer. O corpo era quente e o cheiro adocicado. E ela ali, com sede e coragem.
Os corpos se misturavam, gotas de suor pingavam nos seus olhos. O ardor a fazia chorar. Os lençóis úmidos, a pele molhada e a boca faminta, com fome de saciar a vida.
Novamente, a mão no pescoço e o chá se mantendo quente, e aquele homem vestido de porcelana com cheiro de canela.
Apertava as mãos na xícara com força, não podia com tudo de novo. O chá teimava em ficar com ela, a xícara balançando e a colher já caída no chão. Havia esquecido alguma cena. O pires estava abandonado.
Mordeu a casca da canela. O gosto acre na garganta não a salvava do transe, nem da paixão por ele. Não havia nada alucinante naquela xícara, a não ser a alteração provocada pelo cheiro forte da canela. Canela, homem, homem, canela.
Perfume que remete à emoção, emoção que ela não consegue vencer.
O homem com cheiro de canela estava na sua frente, envolvido em brumas de chá quente.
Acariciando o pescoço, o peito e, depois, o ventre sentiu-se extenuada. Prostrada de prazer. As mãos não obedeciam, enquanto o resto do corpo tremia. O equilíbrio se desfez e o homem se dissipou. A xícara tombou. O amor se estatelou. O chá queimando as coxas, escorreu pelo sofá até manchar o tapete.
Precisava pôr mais água para ferver.
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