Nossos meninos
Daí chega o menino em frente à barraca e tenta me vender o queijo assado na brasa. O calor estava próximo do inferno, em frente às vivendas da Vieira Souto, em que habitam os que não compartilham das delícias infames das democráticas areias cariocas.
O menino suava em bicas e me sorria sem hipocrisia.
– Vai um aí freguesa? Assadinho, na moral, tem com ou sem orégano. Tem calabresa também. Esqueci a farofa que minha mãe fez, mas tenho molho comprado de alho.
– Esqueceu a farofa da sua mãe rapaz?
– É freguesa esqueci…foi mal, mas compra um aí pra me dar uma força. Só sete reais.
– Menino está muito quente, vai lá dar um mergulho e vem assar meu queijo.
– Tá bom, deixo aqui no carvão e volto.
Cinco minutos, volta ele com um sorriso aberto de criança classe média, que recebeu um presente caro. Os olhos eram amendoados, cabelo encarapinhado e rente na cabeça e a boca bem desenhada preenchida com dentes perfeitos. Tinha uma magreza elegante e um caminhar gingado.
– Agora, tá mais fresco né?
O menino estava feliz, me entregou o queijo e sentou-se ao meu lado e da minha amiga na areia, mais seguro e com vontade de contar a vida dele, que se resumia a dezoito anos, bem vividos como se fossem cem. Éramos privilegiadas ouvintes de uma história contada para poucos. Os outros vivem num mundo alheio, longe da realidade em que se sobrevive a cada dia.
Não se chamava Mané, não apontava canivete, nem agitava na Boca. Definitivamente, não era o Pivete que Chico Buarque cantou. Não! Descia o Morro todo dia para vender bala Halls na Feira e queijo na praia no final de semana. Era nascido na favela. Tal como o pai, o avô, o bisavô e, com certeza, o tataravô. Não havia lugar para cortiços no Rio de Janeiro do século XVIII, a República decadente e insana expulsava os trabalhadores pretos da região do café para os morros. Uma nova sociedade despojada de dignidade se multiplicava e todos sabem no que resultou. Mas, nem sempre querem saber.
O menino já era pai, a mãe não parecia confiável e o pai dele foi assassinado dentro do barraco. Vivia com uma menina que agora tinha um filho. Ele tira um dinheiro razoável na praia e guarda moedas para garantia.
– Eu penso em tudo freguesa. Tem um litrão vazio lá em casa que tá cheio de moedas de um real.
Eu e minha amiga nos entreolhamos. Se a mãe da criança precisar de médico tem uma poupança no litrão, quem precisa de plano de saúde? A criança chora dia e noite, mas ele acorda cedo. E não, não usa droga, nadinha. Pula do trem da Central e se vira.
– Não chego perto da Boca não…tenho medo. Sinto um arrepio quando lembro do meu pai, sinto saudade dele, sabe.
– Menino, tem que usar camisinha…..
– Não uso não, só não quero fazer mais um. Dá trabalho né..minha esposa (sim, ele usou o termo “esposa”) fica lá só cuidando da criança e não pode trabalhar.
Quem é criança aqui? Eu me senti criança. Indefesa. Não suportaria viver desprotegida. Sem trabalho fixo, sem garantia, sem plano de saúde, cartão de crédito ou conta de luz. Aquele menino tinha mais coragem do que minha geração inteira. Ele levantou todo sujo de areia e foi conversar com outro menino que passava por ali.
– Deixa eu levar um papo ali com o “fiel”….
“Fiel” era o parceiro de vendas de queijos. Ele dava dicas sem temer a concorrência. Conversou com o amigo e, em seguida, voltou e foi pegando as tralhas, quase se despedindo.
Perguntei porque ele não escrevia na caixa de isopor o produto que estava oferecendo, ele desconversou e disse que iria grudar uma foto. Pensei, então, sua estúpida, ele não sabe ler. No Morro não precisa saber ler. Precisa ser esperto, andar de cabeça abaixada e alma erguida. Precisa saber rezar pra São Jorge proteger e ter uma poupança no litrão pra caso precisar ir no doutor. Não precisa frequentar escola, ou ter livro em casa. No Morro, cinquenta reais é galo. De resto, basta aprender quanto vale um litro de leite. A vida ensina do pior jeito e o importante é ter coragem e caráter. Precisa tentar ser feliz, ganhar o trocado pra comprar gás, por comida na mesa e pensar que amanhã começa tudo de novo. Mesa? Será que ele tem uma? O calor estava cada vez mais forte.
– Vai lá no mar de novo!!
– Não vou não. Falta vender quinze, depois volto pra casa. Valeu aí viu freguesia, amanhã eu volto pra bater outro papo cabeça com vocês.
E lá se foi ele. Sentimos um vazio tão grande no peito quando ele foi embora, talvez porque a maternidade nos ensina que todas as crianças são filhos de todas as mães. Talvez, porque nós brasileiras sejamos todas mães desses meninos que perambulam por aí nas areias da Zona Sul, no sinal de trânsito, nas feiras e nas favelas das cidades. Rezamos por eles, ajudamos com uns trocados de vez em quando ou quem sabe um colo quando esse faltar. Somos todas mães. Todas somos órfãs desses filhos que não são nossos. E ele? Ele se chamava Menino.
6 Comments
Muito bacana esta experiência Deborah!
Inesquecível Duda!
Excelente e provocativa reflexão ! Gratidão
Muito obrigada Jussara!!!!! Adoro receber o retorno dos meus leitores!
Texto primoroso e sem culpa na alma.Retrata sem ser piegas as diferenças de classes sociais!! Parabéns!!🥰
Josemary, muito obrigada por ler meu texto e por ser gentil ao me dar esse retorno; muito importante para mim!