Em um raro momento em que me percebia sozinha no quarto, alheia com um naco de bolo de baunilha nas mãos, cenas trágicas e aventureiras passavam diante dos meus olhos. Enquanto isso o sol da Barra estava colorindo lentamente as janelas da manhã. Com pouco esforço, eu conseguia admirar as gaivotas que passavam planando em direção à praia, aos gritos e em bandos. O burburinho no corredor delatava que mais um dia recomeçava e a enfermagem estava bem disposta. Como sempre.
A imagem da Lagoa e das garças se equilibrando nos galhos frágeis das árvores que a circundam, no entanto, insistiam monopolizar minha mente. Uma manhã como todas, colorida e quente. Estava diante de mais um oásis que descobrimos no Rio. O Rio é cheio deles, por isso essa cidade é tão arrebatadora. A geografia permite esse isolamento saudável no meio das florestas, à margem das lagoas, sob a vigilância das capivaras e dos jacarés. O aroma maravilhoso de mato misturado com o cheiro do mar me enlouquece. As borboletas ariscas se perdem no verde bandeira com os micos e papagaios. Tudo de intensa cor, com muito azul, e muito verde. Os animais se embalam nas copas das árvores, se escondem nos mangues e despontam felizes e sorridentes como as meigas preguiças. Então, numa segunda-feira, nesse lugar “art nouveau da natureza”, me entreguei à garupa de um potro elegante e rebelde. Lindo de morrer! “O mais belo ser da criação” como afirmava Mario Quintana, que me seduziu desde o primeiro dia. De crina loira, trote elegante e pelagem vermelha. Os olhos ariscos me despertavam suspeitas, que julgava infundadas…ariscos demais, desconfiados demais. A vigorosa garupa me dava um estranho prazer, o vislumbre do céu e das árvores sob o trote ritmado me libertava de tudo, de traumas, de frustrações, de mágoas e outros laços negativos, que se desfaziam aos pedaços sobrando apenas eu, nua e com toda pureza que já habitou um dia meu coração. O potro gentilmente me concedia um passe ao paraíso, em que apenas a respiração profunda e o cheiro do suor do animal me lembravam que eu ainda estava neste planeta. Era assim, de verdade. E de verdade, e por um detalhe e, num milésimo de segundo, a montaria se assustou e me lançou como um peão no ar, fazendo soçobrar meu corpo na pista de areia grossa. Estava muito quente o sol. Quente demais.
Wii-woo-wii-wooo anunciava a ambulância. Num espetáculo macabro de sangue e convulsões, a mão do meu marido, aflita, segurando a minha me tirou de um sono sem sentido a caminho da Emergência. Uma dor moribunda irradiava das minhas costas. Completamente em transe, eu lembrava do método de tortura das tribos nórdicas, em formato de águia. Certamente, Ragnar e seus seguidores tinham assustadoras experiências com fraturas nessa área das costelas e regiões próximas. A dor de uma vértebra fissurada é excruciante. Some-se a isso mais oito costelas fraturadas, uma língua cortada, água no pulmão, dois dentes quebrados e o pesadelo está feito. Nada em minha vida havia me causado dores tão terríveis. Fiquei nesse estado de agonia por muito tempo, sendo levada de um hospital para outro, no inferno do trânsito do Rio de Janeiro, até que no final do dia, fui medicada corretamente e com exame na maca, recolhida ao hospital na Barra. Como aquele dia, não era meu dia, a máquina de tomografia do primeiro hospital para qual fui levada estava quebrada! Mas, o Rio tem o Hospital Miguel Couto no Leblon. Um hospital público para emergências fantástico, em que as pessoas trabalham com muita habilidade e dedicação. Devo meu primeiro registro de alívio a essa Emergência que pode me medicar e me tirar um pouco da tortura que eu estava submetida antes de ser hospitalizada com todo o conforto e que toda humanidade deveria ter acesso.
É comovente mesmo o que a dor causa nas pessoas. Provoca autopiedade e sensação de fim de linha. Limitação. Fragilidade. Durante todo o percurso que fizemos entre a zona oeste e zona sul do Rio, que nos custou horas em ambulâncias, eu conseguia vislumbrar os olhos do meu marido e pensava o que iria acontecer conosco. Eu tinha certeza que algo muito grave havia acontecido comigo. Ele também.
Depois de três dias de terapia intensiva, acordei no quarto iluminado e cheio de esperança do hospital. Minhas limitações exigiam paciência. Tudo que é essencial caía no chão, escorregava das minhas mãos, trocar uma roupa sozinha era missão impossível e buscar o lençol nos pés da cama era como escalar o Everest. Graças ao Farmacêutico alemão Freidrich Sertuner, a morfina fez meus dias mais calmos no hospital. Mas, foi graças ao meu marido alemão que consegui superar tudo. Apesar de tanta dor e de todo o susto eu estava feliz. Feliz pelo diagnóstico não ter sido totalmente incapacitante, apesar de grave. Feliz por estar viva e ter meu marido, meus filhos, amigos e vizinhos, cada um do seu modo, zelando e rezando por mim. Seria injusto se não louvasse tudo isso. Minha fé que sempre me ajudou a recomeçar, minha vontade de viver e de amar não me manteriam numa cama por muito tempo. Foi, de fato, um infortúnio e grave, mas eu teria minha vida de volta.
Eu mesma me impus a censura de jamais reclamar.
Providenciado um bloqueio anestésico, duas semanas depois estava em casa e uma nova realidade começava. Passado o efeito da medicação e sem morfina minhas noites eram de terror e, para qualquer movimento simples, dependia da generosidade e cumplicidade do meu marido. Ele estava exausto também. A minha melhor posição era em pé, como não poderia passar a noite em pé como um cacto, tudo se tornou complicado sem a infraestrutura hospitalar. Contudo, eu não me queixava, embora a dor me fizesse chorar. A probabilidade de perder a vida ou meus movimentos para sempre foram duas suposições que vivi e que escapei por milímetros. Aquele detalhe que só anjos, espíritos protetores ou fadas madrinhas são capazes de explicar.
Aos poucos, fui resgatando meus movimentos normais e a fisioterapia foi fazendo o seu milagre diário. Mas, o que me fez sorrir novamente foi a hidroginástica e posso afirmar que me encontro, praticamente, sem dores. Tenho bem claro que meu corpo sofreu um trauma profundo e que nunca mais será o mesmo. De manhã, ao levantar sinto uma por uma das minhas costelas e meu esqueleto se tornou palpável; nunca valorizei e cuidei tanto dos meus ossos e músculos. Parece que descobri meu corpo e suas fragilidades. Aliás, conto essa história porque, depois de chegar tão perto do inferno, testemunhei o óbvio, de como dependemos uns dos outros e como a vida é frágil. O porquê de reclamar menos e agradecer mais.
Isso tudo é bem clichê, desde que não aconteça conosco, quando o clichê passa a ser real e assustador. As emoções humanas podem ser até previsíveis, mas as reações diante de dores como essas são inimagináveis.
Passada o tempo ficou essa experiência e metade de um ano para recuperação. Não voltei mais naquele oásis, embora sinta muita saudade. Prefiro fazer de conta que o tempo parou para mim e para aquele lugar. Sinto falta das pessoas, sempre tão boas para mim e que sofreram tanto com essa guinada em nossas vidas. Sinto falta dos cavalos, de alimentá-los e banhá-los, me enroscar no pescoço deles e encontrar fios perdidos das crinas nas minhas roupas. Sinto, profundamente, falta do meu treinador. Eu não imagino, eu tenho certeza do carinho dele por mim e o quanto ele torceu pela minha recuperação. Guardo todos e tudo com afeto e respeito. Os cavalos são animais maravilhosos, que se comunicam conosco. Eu já havia chegado neste estágio, eu sabia o que ele me dizia e não quis escutar. Foi apenas o tempo, parei tarde demais.

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