No rádio do carro tocava uma música, não lembro se de Elton John ou John Lennon. Era uma balada linda que me fazia viajar mais rápido do que o tráfego permitia. Ao lado direito do carro, o rio deslizava como uma lâmina, espelhando o sol a se pôr com reflexos vermelhos e amarelos que explodiam no meu rosto. A primavera estava próxima, mas o frio úmido ainda teimava em se apresentar. O trajeto foi lento até em casa, embora não muito distante. A cidade não apaixona, mas é a que me viu nascer. De certa forma, a paisagem percorria lenta em meu cérebro trazendo cada momento vivido em cada pedaço daquele chão emoldurado por um rio, um rio que não é um só rio. Um rio de vários rios. Um rio que não está sozinho. Mas eu sim, eu estava sozinha, completamente sozinha ao som de um John, sei lá. A sensação de alívio e perda, embora incoerentes, eram reais. Assim, o final do dia da minha aposentadoria. Eu precisava de calma. O tráfego não colaborava e aquele momento, muito tempo depois percebi, aquela via mudaria meu rumo. A vida até aí não tinha tanto sentido. Era, apenas, aceita. Tinha sido vivida. Respirar, trabalhar, superar, estudar, cuidar de um, de outro, de todo mundo. Ser mãe. Ser amiga. Ler, escutar. Ser filha. Ser pai. Ser avô. Amigos nem tantos. Limpar a casa, pagar contas, prazos, manicure, recursos, audiência, cuidar criança, lavanderia, supermercado, shopping, fila, dentista, reunião, escola, exame de sangue, banco, família. Morre pai, adoece mãe. Filhos que vão! Ficam o cachorro e algum amigo. Morre a mãe.
A volta para casa vazia de gente e atordoada pelo silêncio assustou demais. Apenas meus livros falavam comigo. E, também, meus discos. Sim, eles costumam falar comigo. Os instantes que se foram, dissolvem-se bem em frente a mim, num milésimo de segundo eterno. Tantos livros e plantas sempre me bastaram. A tristeza já estava habituada a olhar para o teto e a brancura da cal continha mais páginas e mais palavras que meu dicionário. Contava as nuvens e procurava as estrelas à noite. Fumava um cigarro e outro, saboreava um chá ou um vinho, e os livros se empilhando, e os discos tocando. Até que a solitude não suportou mais o mesmo corpo. Medita, faz ioga, corre, malha, grita! Abraça tua solidão.
Não que a vida não tenha sido também doce. Havia um silêncio doce guardado comigo. Mas agora, eu estava ali deserta e sugada de vida. As abelhas sabem, não sei como elas sabem, elas apenas sabem que os trabalhos de uma operária dependem das flores. E isso há muito andava esquecido. Acreditava só no dever isso, dever aquilo. Esqueci, completamente, que o segredo de viver é o equilíbrio. As tarefas diárias pesam muito se a vida não for preenchida com delicadeza. Não basta a cera, precisamos do mel e isso requer o odor e o colorido das flores. Minhas antenas não conectavam mais nada. Sem olfato, tato ou audição. Uma abelha semimorta, com a colmeia limpa e vazia.
Foi daí que a catarse se apoderou de mim. Escrevi tantas histórias ao longo da minha vida e, ainda, alguns poemas bobos, que por ter certeza da minha insignificância me desfiz de tudo enquanto podia. Nunca havia sido orientada em como escrever pequenas histórias ou poesias estúpidas (como invejo os poetas natos que falam tudo que sentimos sem nos conhecer). Eu apenas via e escrevia. Eu sentia e escrevia. Eu analisava e escrevia. Isso nem sempre era bom. Imagina o que diriam os estranhos lendo minhas confissões e mágoas, alegrias pueris e luto? Não daria a chance para me dissecarem viva. Eu sentia um terror só de imaginar essa possibilidade. Mas, como isso é mais forte, não se consegue evitar. E, sem perceber, os mesmos demônios que me rondavam na pouca idade estavam ali, implorando, exigindo para serem libertados. Gritavam liberdade nos silêncios dos meus livros. Escrever. Escrever para todos. Escreva!
Por curiosidade e tentando aplacar diabinhos que me rondavam noite e dia, alguns anos antes, me inscrevi em uma oficina literária de prestígio em Porto Alegre. Fui relutando até chegar no meu destino, nem tráfego pesado havia nas ruas que me levavam até lá. Uma enorme vaga para estacionar em frente e o orientador extremamente competente e vivaz me surpreendeu e me disseram para ficar. Sábio e experiente escritor, mostrava como passear pelo “caminho das pedras”. Obviamente, que ele não ensinava a escrever. Porque isso não se ensina. Não se obriga a gostar. Seria como dizer a um pintor as cores das tintas que ele deveria usar nos quadros. Não se interfere nas artes. Ele orientava com maestria. Indicava autores e métodos de estudo que me deixavam eufórica. Queria devorar todos aqueles livros e eu quase consegui. Desde então, sigo naquele caminho, procurando me nutrir de boa literatura. Os autores acabam se apresentando sem esforço e cada um vai se afeiçoando por esse ou por aquela que mais se aproxima dos seus pensamentos. Eu fui obrigada a escrever, quase que sob ameaça, no primeiro dia que sentei naquela carteira. É claro, que isso não durou muito porque, à medida que o arquivo de histórias começou a ficar farto, o volume se tornou assustadoramente grande, dei um jeito de escapar daquele suplício. Na semana anterior, o orientador me puxou para o lado, devolveu um livro que (pasmem!) emprestei a ele e me disse para nunca parar. Ele sabia o quanto estava assustada com toda aquela produção. Eu lembro, na minha infância distante, que eu havia ganho de presente uma lousa num aniversário. Era verde com pés em triângulo e ocupava um espaço enorme no meu quarto. Até hoje, adoro lousas e providenciei uma no meu novo apartamento em que moro no Rio. Hoje existem papéis apropriados para se colar na parede que fazem as vezes de lousas enormes. Não imaginam minha felicidade recente quando chegou a caixa cheia de giz colorido que comprei num aplicativo. Bem, eu tinha uma lousa no meu quarto. Morava em um pequeno apartamento no centro da cidade, o que impossibilitava qualquer brincadeira na rua como crianças normais faziam naquela época. Cresci assistindo à televisão entre primos e outros parentes, em prédio familiar; digo familiar no sentido que era, de fato, da família e, por que não, familiar do jeito que se observavam os bons costumes e não se faziam escândalos (ao menos, para o público externo ao prédio). Sem irmãos, e apesar de primos por perto, o ambiente íntimo era por demais solitário para mim. Uma solidãozinha já me rondava desde cedo, querendo minha companhia. A lousa, entretanto, me tirava dessa atmosfera nada infantil, em que um casal se debatia em acusações diárias e a família no entorno testemunhava inerte, sem se envolver. A lousa, então, era fantástica porque, diferente do papel em que a caneta deixa marcas ainda que se apague até morrer ou ainda que se dane a picotar até o átomo se mostrar, no quadro-negro um pano úmido apaga por completo as “mal traçadas linhas”. Lembro que, numa tarde de tédio, escrevi algo parecido com um poema em giz branco. Deveria ter umas oito linhas no máximo e duas estrofes. Não divulgo nem sob tortura, mas ainda lembro em parte o que escrevi. Escrevi e achei engraçado porque parecia coisa de gente adulta e sem muito nexo para mim. Creio que tinha oito anos mais ou menos. Não sei se ouvi algo parecido em algum lugar, mas o fato é que era meu. E fiquei por horas a fio lendo e relendo aquilo. Até que cansei e me distraí quando meu pai chegou do trabalho e leu aquela coisa. Quando eu informei que eu havia escrito ele correu a chamar minha mãe. Naquela época, não se faziam posts ou selfies, mas tenho certeza de que teriam postado no Facebook tal o espanto deles. De certa forma, começaram a esquecer um pouco um do outro e passaram a prestar um pouco mais de atenção na filha deles. Eu achava uma graça como algo que saía tão natural da minha cabeça pudesse causar tanto espanto neles. Mas, como escritores – com raras exceções – no Brasil não costumam ganhar a vida com livros, logo fui “incentivada” a parar de ler romances e escrever loucuras para me concentrar em matemática, física ou química, matérias que poderiam me levar a ganhar um Nobel.
Era muito difícil orgulhar os pais naquele prédio. Os pais não tinham muito espaço para filhos. E a vida se desenrolou diferente para cada um, uns prosperaram mais que outros, mas todos fizeram pequenos milagres por se manterem longe de problemas e fracassos. O assunto aqui sou eu, então posso dizer que quanto a mim, fiz tudo da melhor forma que podia. Cursei uma boa universidade, prestei concursos públicos e com isso consegui criar meus filhos quase que sem muita assessoria e com muita dignidade.
Por anos me vi como uma abelha-operária. Uma pesquisa na rede me mostrou, certa vez, que a origem do nome DEBORAH é do hebraico “Devorá” que significa Abelha. Não sei o que isso quer dizer, mas o certo é que a abelha é um animal com natureza trabalhadora, organizada e esforçada. Não entendo como divertido e parece uma maldição. Mas o certo é que organizei o caos por anos. Sim, a vida da maioria das mulheres no Brasil não é para amadoras. Uma realidade que não me oportunizava a escrita e a rara leitura de um livro se fazia em suaves prestações, tal o esgotamento que a rotina me impunha. As férias do trabalho coincidiam com as férias das crianças, então ler livros era uma atividade que eu teimava fazer escondida no banheiro para não ser perturbada nem pelos cachorros.
Manter uma casa, criar filhos, defender a família e trabalhar pode não ser tão tedioso. Para minha personalidade observadora rendeu muitos e muitos personagens e situações que partiam da minha vivência para uma história, um conto ou uma crônica. A escrita parou de ser produzida, mas as histórias pululavam nos meus pensamentos e sonhos. Um dia confessei isso a um primo querido e ele me obrigou a (trans)escrever meus sonhos. Era nossa diversão, entre um churrasco e outro, entre um domingo e outro a narrativa de sonhos. Ele adorava e eu tinha plateia garantida. Mas, como a vida é inflexível e austera, o perdi antes de fazermos cinquenta anos, meu primo-irmão, para um câncer maligno e violento. Ainda hoje, me vejo abalada por essa perda tão jovem e tão importante, apesar dos anos terem se passado. Posso afirmar, com certeza, que ele foi o primeiro ao qual me expus como uma aspirante à escritora, que mostraria ao meu pequeno mundo, que escrever é uma necessidade e uma arte. A vida por si só é uma novela, ou melhor, uma ópera. Com cenários, trilha sonora, amores, dores, festas, dramas, perdas e sensações. Porque nada é isolado. Tudo está conjugado dentro de um roteiro previamente (ou não) escrito. Então, não apenas as ações, o andar de um ou outro personagem funciona. Precisamos de movimento, de luzes, de integração, de chuva e de sol. Não há outra forma de mostrar sentimentos sem que possamos nos transportar para essas sensações maravilhosas que provam que estamos vivos.
A abelha-rainha procurava um zangão. Claro, eu sempre funcionei como mera operária e, após o rompimento do ciclo no trabalho, outro ciclo estaria por vir. Estava na hora de ser promovida à soberana reprodutiva. Quando menciono a palavra reprodutiva quero dizer sobre a capacidade de trocar um sentimento de forma tão profunda a ponto de poder reproduzir em forma de textos e parágrafos. Não estaria pronta para escrever se nunca sentisse no fundo da minha fraqueza a excelência de um amor correspondido. Seja ele infinito ou efêmero. Entre flertes e casos mal resolvidos, resultaram apenas dores e ferroadas já cicatrizadas. Eu precisava amar. Sem idealizações ou rótulos comprados prontos em farmácia. Queria algo avassalador e que ficasse na pele para sempre, que me fizesse escrever e me oportunizasse mais histórias e novelas. Amar a vida, viver na forma mais profunda e vulnerável. Viver a dor da despedida, a alegria do retorno, a fé e a confiança nos outros e no outro. Aquele amor que faz o vento soprar coisas no ouvido. As árvores falarem. Morrer afogada em lágrimas. Perder o controle sobre os próprios pés. E o amor aparece. Sempre.
Eu sonhava poder escrever de forma despretensiosa e lírica, mas que me autorizasse a ser reflexiva também. Porque essa sou eu. E, claro, tudo isso me permitiu escrever um romance e depois do primeiro livro todos os meus contos e histórias que aparecem no meu blog que atualizo sempre que posso. Refiz minha vida afetiva um pouco antes de entrar na sexta década, meu marido é um parceiro maravilhoso que me incentiva e admira essa capacidade de transmutar pessoas em personagens de ficção. A criatividade que faz o leitor confundir com realidade.
Trago na minha trajetória de leitora as minhas homenagens e admiração sincera, principalmente, às mulheres. Mulheres maravilhosas que me inspiraram e me inspiram a ligar o computador e de uma tela em branco, preencher com sonhos e fadas, florestas e mares, neve e sol. Foram mulheres que amaram, sofreram, viveram intensamente e deixaram para nós um legado inimaginável. São livros que as tornaram imortais e das quais não me sinto sequer à altura de um rodapé daquelas páginas. Mas, tenho todas como inspiradoras. Foram elas que me levaram a percorrer esse caminho: Clarice Lispector, C. Brontë, Cecília Meireles, Virginia Woolf, Anaîs N., I. Allende e tantas outras. Mais que os escritores, as personagens femininas: Ana Karenina de Tolstói, Capitu de Machado de Assis e Ana Terra de Érico Veríssimo. Maravilhosas. Essas (e tantas outras), que me fazem sonhar e pensar. Houve um livro que marcou por ser tão singelo e puro, mas ao mesmo tempo envolvente e, pelas circunstâncias em que ele veio para minhas mãos, Os caçadores de conchas, da falecida Rosamunde Pilcher. Pode-se dizer, no mínimo, sedutor. Tenho muito carinho pela autora e pela personagem Penelope. Longe de ser um clássico, um companheiro para um momento triste ou solitário. Inesquecível, para mim.
Como eu disse, eu sou aposentada e não dependo da literatura para sobreviver. Ouso em denominar o que faço de literatura! Mas, digamos, é o que eu tento fazer e contribuir para a cultura do meu país. Quando se possui uma carga de cultura privilegiada creio ser uma obrigação dividir e repassar isso aos outros. Oportunizar o conhecimento ao outro. É frustrante escrever sem que haja retorno ou crítica. Recebi resenhas maravilhosas e inesperadas sobre o meu romance e algumas pessoas interagem na minha página comentando sobre meus textos, me mandam e-mails ou me chamam nas redes sociais. O escritor está dando sempre a face à tapa como dizem. Mas, eu amo essa troca. O Grupo “Mulherio das Letras” me possibilitou um contato amplo com mulheres que buscam o mesmo que eu. Que tentam entrar no mercado de produção literária e serem lidas. Sempre que é possível, participo de alguma coletânea lançada através do Grupo e, o melhor de tudo, as amizades que fiz com mulheres maravilhosas ali. Todo artista busca seu público. Foi lisonjeiro e surpreendente para mim ter meu primeiro livro lançado na Feira do Livro em Porto Alegre e ver pessoas fazendo uma pequena fila para receber meu autógrafo. E foi terrível também, para não dizer traumático, quando em outra sessão de autógrafos do mesmo livro, em uma livraria, recebi três pessoas para comprar o livro, embora a intenção tenha sido oportunizar aos amigos e conhecidos interessados, mas ausentes na época da Feira.
Hoje em dia, tenho bem claro que escrevo em primeiro lugar para mim. Eu preciso escrever e aceito essa necessidade de forma humilde. Sei que é uma forma de expressão legítima a arte escrita. Meu estilo intimista agrada alguns e desagrada outros, mas essa é minha forma de escrever. Essa sou eu. Sou honesta com o que sinto e, em consequência, com o que escrevo. Não gosto de uma vida rasa. Minhas histórias são baseadas em sentimentos e observações. Tento ir a fundo no que uma determinada situação me mostra e tento revelar no texto o sentimento causado em mim. Cada personagem, cada paisagem faz parte da minha criatividade e de um conjunto de coisas, de circunstâncias positivas ou negativas que vivi ou tenho vivido. Minha colmeia está limpa, mas não mais vazia, e as prateleiras estão lotadas de livros maravilhosos. No meio desses livros, o meu livro e as coletâneas de que já participei. Creio que conquistei a majestade na vida, agora é continuar escrevendo e, quem sabe, um novo romance, um novo poema, uma nova história. Para escrever é preciso viver e sentir. Zummmmmmmmmmmm. Zummmmmmmmmm. Zummmmmmmmm.
O perfume da erva úmida que fluía nas curvas do Alto era inebriante. Eu atravessava cerimonioso uma floresta tropical. Passavam carros do lado contrário e os ônibus desabavam nas curvas. Era assustador, mas durante o meu percurso até a Tijuca, o Alto, as curvas, a floresta, o mato, os micos, aquilo tudo efervescendo no entardecer do Rio, era só para mim. Subir o Alto da Boa Vista dá essa impressão egoísta. Talvez a pista estreita, a proximidade da vegetação. Não sei. O céu pintado de azul cobalto. A floresta se torna propriedade exclusiva de cada um que passa por ali. O Alto era meu. (p. 37, Cap. 9, do livro O Banco Amarelo do Arpoador, uma breve história de amor, Ed. Madrepérola, Londrina. Deborah Almeida. 2018).
2 Comments
As descobertas da vida pedem outro momento “egoísta”. Sabes o quanto admiro tua escrita… bj
Ceres, obrigada querida! Muito bom saber que leste e que gostaste!
Tua opinião importa muito.
beijão