Para Ricardo, abnegado no combate ao coronavírus
“Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre…
Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida…
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer; amar é sofrer mais”!
Menotti del Picchia
– I –
Prazer em conhecer
Meu nome é Luís Carlos B. dos Santos. Moro em Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Tenho cinquenta e cinco anos e trabalho como garçom num restaurante em Copacabana. Entre caipirinhas e empadas perambulo quilômetros, diariamente, dentro de um pequeno estabelecimento na zona sul, servindo os melhores e piores indivíduos que circulam na cidade. Durmo metade da manhã, ligo o rádio, acendo um cigarro e passo um café. O cheiro do café me anima e me encoraja a ouvir as notícias alardeadas pelo comentarista de sempre. Banho e, mais tarde, o almoço do boteco da esquina. Feijão com arroz, bife e salada. Cumpro minhas obrigações e me preparo para pegar o ônibus. Saio às duas horas da tarde, embora o meu horário de trabalho inicie quatro horas mais tarde, mas sempre tenho um livro que me faz companhia e os passageiros do ônibus que não me canso de observar. E tudo segue como se espera. Trânsito pesado, restaurante cheio (graças a Deus!) e volta para casa. Mais trânsito, barulho, e pivete de rua. A vida não oferece surpresas, todos moradores do prédio suburbano onde moro parecem levar a vida conformados, igual a mim. Tenho um vizinho, o Amilton sem H, casado com a mulher de estatura baixa e de olhos claros, que ele chama de “minha filha”. Não tive oportunidade, apesar de cruzar com os dois por mais de ano, de ser apresentado àquela senhora. Portanto, não sei o nome dela. Eles parecem ter a mesma meia idade, um pouco maltratados. O rosto dele pode ser descrito assim: dois olhos escuros que me encaram trêmulos e, abaixo da linha do nariz pontudo, fartos pelos ruivos e rígidos acima dos lábios. Anda sempre cabisbaixo e infeliz, como se carregasse um hipopótamo nas costas, além dos pesados óculos no nariz. A aposentadoria, como ele sempre faz questão de comentar, é minguada, mal paga as contas, apesar da dona ostentar alguns bons adereços nas mãos e orelhas e seja bem fornida. Ignoro se ela tem algum rendimento próprio. Eles caminham todas as manhãs, o mesmo trajeto. Cumprimentam, em passos miúdos e rápidos, os moradores e alguns comerciantes, compram alguma coisa para cozinhar e voltam para o quarto e sala. Eu já observei que nos finais de semana, principalmente aos sábados, não cruzo com eles na esquina. Não sei, ao certo, o motivo de cabularem o exercício matinal. Talvez, frequentem a casa de algum parente. Lembrei de perguntar para o Juarez da Padaria se ele tem conhecimento de filho ou sobrinho do casal de vizinhos. Juarez conhece todos e não vai me privar da informação.
Juarez é meu conhecido de longa data aqui no bairro. Sujeito bem apessoado, olhos claros e tez morena, usa sempre um avental bem branco, sem manchas. Imagino que ele deva ter um avental para cada dia do ano. Cara bem humorada, todos os dias parece comemorar algo. Irritante. Não consigo entender, já que passa mais tempo na Linha Amarela que em casa (conforme me confessou, recentemente). Obviamente, é bastante simpático e adora conversar do outro lado do balcão. E, com isso, atrai mais e mais freguesia que, na carência dos dias, encontra afabilidade no balcão do Juarez. Todos os dias fico exposto a esse humor comovente e, depois do almoço no bar, ando alguns metros e troco moedas por cafezinho, atenção e fofoca. Confesso que não desgosto de me inteirar do cotidiano e vicissitudes alheias; as minhas já não me bastam.
Certo dia, numa quinta-feira muito quente, depois de chover, ininterruptamente, por mais de setenta e duas horas, me deparei com um Juarez deprimido. Para minha surpresa, quando encostei o corpo no balcão pude sentir o calor da energia, que pesava o ar e se somava à canícula de final de verão. Mas Juarez, acostumado com as intempéries tropicais, não se acovardava com o excesso de calor. Problemas econômicos, dificilmente, estariam afetando o humor dele. O empreendimento ia bem, ele trabalhava igual um mouro, mas nunca reclamou. Não era rico, mas estava bem estabelecido na vida. Forte como um touro, não aparentava sofrer de alguma moléstia. O olhar colado no chão, voz entrecortada e os olhos empapuçados me comoviam. Evitava o olhar alheio e todos clientes, estarrecidos, se entreolhavam buscando decifrar tal sofrimento. O motivo de tal estado de espirito haveria de ser outro…ou outra. Minha curiosidade subiu, num susto, para a minha cabeça igual ao termômetro quarenta graus em Bangu. Mal conseguia controlar meu impulso para interrogar o que havia se abatido contra ele. O silêncio prevalecia na Padaria, sorvi meu cafezinho angustiado, ouvindo apenas o pensamento coletivo que pretendia salvar a vida do nosso Juarez. Fiquei ali um pouco mais do esperado e deixei o padeiro em paz com sua tristeza. Assim fizeram os demais frequentadores, solidários e órfãos da atenção cotidiana, todos tristes saímos para nossos afazeres. Aquilo estragou meu dia. Pensei o que faria se não tivesse mais os momentos saudáveis com meus conhecidos na Padaria. O que teria afetado a alegria daquele homem? E como desgraça nunca vem desacompanhada, permaneci ignorando os detalhes de parentesco do meu vizinho Amilton sem H e sua senhora. O que é uma lástima. Estava próximo do horário de sair para trabalhar. A viagem de ônibus para Copacabana aquela tarde foi um tormento. Minha cabeça não me dava sossego, imaginando a causa da tragédia recente do Juarez. O que teria acontecido? Um rapaz trabalhador, agregador e bonitão. Não imagino mulheres trazendo infelicidade àquele coração, mas tudo é possível quando se trata de seres humanos. Esse mal estar me trouxe a lembrança de Maria da Conceição, que morava no Largo do Machado. O ônibus sacolejando naquela buraqueira, o engarrafamento e eu transpirando de calor e memórias. Melhor guardar as memórias para certa ocasião.
O restaurante estava lotado desde o inicio da tarde. Com o calorão, o carioca foge para as ruas e mergulha em tonéis de cerveja. Esse povo não tem sossego. Eu saía disparando entre as mesas com a bandeja redonda de alumínio nos ombros abarrotada de copos com colarinhos exatos. O gelo não tolerava o calor muito tempo e escorria pelos copos, pela bandeja e, formando um diminuto e refrescante arroio, desaguava pela manga da minha camisa. Minhas memórias repousavam quietas. Prevalecia o burburinho de conversas, risadas, gritarias, músicas e carros que passavam no meio da rua, diante daquele fuzuê. Meu trabalho é meu delírio, limita meus pensamentos mais complexos. Sempre movido por instinto e traquejo. Com ar de autoridade e com brio, equilibrava nos ombros as bandejas por mais de trinta anos. Pouco estudo, alguns livros e com aparência nada incomum, procurava sempre por elegância e asseio, a delicadeza e polidez com os clientes. Meu patrão depende do meu trabalho, como eu do restaurante. Vivíamos, há muitos anos, a simbiose da subsistência. O restaurante tornou-se minha razão e riqueza. O tempo me fez enraizar entre as mesas de madeira já desbotadas e a celebrarem meu nome como prata da casa; minha existência é o centro em torno no qual cada empregado, cada garçom e atendente gravita para gerar força de trabalho; como um elétron girando ao redor do átomo. ”Dos Santos” sempre sabe o que fazer e dizer. Daí, surgiram minhas possibilidades.
-II –
Memórias e possibilidades
Caminhando pela Bolívar, em direção à Avenida Nossa Senhora de Copacabana, quase amanhecendo, vou direto ao ponto do ônibus. Estava realmente cansado. Minha viagem até Jacarepaguá seria mais rápida naquele horário, apenas eu e um casal dentro do ônibus. Estavam os dois sentados algumas fileiras na minha frente, o homem deixava a cabeça debruçar no ombro esquerdo da companheira que, apesar de parecer exausta, submetia-se ao suposto carinho. Não fossem os buracos do asfalto, certamente, aquele homem teria o repouso dos anjos. Já a mulher, coitada. Pequena, carregava uma vida e o um homem naquele ônibus. A cabeça inclinada para trás me permitia analisar o olhar de aflição e renúncia em direção à janela no lado oposto. O que seria dessa mulher? O parceiro parecia alheio e desinteressado. Não questionava o desconforto dela, apenas impingia-lhe o peso morto da sua cabeça vazia e de fartos cabelos bem sujos. Imaginava eu que estavam retornando do trabalho ou que ele havia buscado a mulher no trabalho, já que estava desempregado. Quem sabe foram a um hospital, ou serviço médico, por isso o adiantado da hora. Talvez tenham sido obrigados a procurar atendimento muito longe de casa. Possivelmente, têm crianças em casa e moram perto de mim, em Jacarepaguá. Ou, quem sabe, saíram da Cidade de Deus apenas para beber, longe de casa, longe dos problemas e dos filhos. Ele tomou um porre de dar dó e agora ela precisa arrastar o brutamontes até o subúrbio nos ombros. Devem ter iniciado um relacionamento quando mais jovens e mais atraentes, sem pesquisar muito sobre o desgosto de cada um, como a grande maioria dos casais fazem. Juntaram os caraminguás e, apesar disso, a classe social não alavancou. Ao contrário, a cada ano que passa e a cada filho que nasce, as economias desaparecem. Minha solidão não conseguia invejá-los. Não optei pelo celibato, mas sempre recusei a falta de opção ou a insegurança acompanhada. A fraqueza da existência faz com que pessoas tristes compartilhem uniões indesejadas. Efêmeras. Acidentais. Trágicas. Solitárias. Vejo a silhueta da passageira lá na frente, e imagino se questionando dia e noite como foi acreditar que era possível ser feliz sem o que é mais básico, sem carinho, sem dinheiro, sem atenção e sem cuidado. Não moramos num país fácil, estamos sempre carentes de todos, mas preservo minha dignidade. Minha vida sem-par. Meu eu sem ser seu.
Maria da Conceição, aquela do Largo da Machado vem, novamente, à lembrança. Mulher preciosa, de ancas largas, cabelos negros, longos e escuros como a pele cor de jambo que ela roçava em mim. Conheci essa mulher numa noite quente, como a de hoje, no restaurante. Estava acompanhada, é verdade! Tinha a boca bem delineada com batom vermelho e usava um vestido colado, preto e curto. Meus olhos perderam a noção do perigo quando vislumbrei a beleza nada discreta de Maria da Conceição. Puxei pelo braço, num rompante, o garçom encarregado de cuidar da mesa de canto que ela, com anuência do tal acompanhante, havia escolhido para se acomodar. Deixei minha elegância dois metros para trás e olhei direto nos olhos dela. O que ela desejava? “Um chopp e uns petiscos.” O homem um pouco desconfiado, interrompendo minha intenção de dirigir a palavra a ela, foi logo mostrando quem mandava e me exigiu uma garrafa da cerveja mais gelada. A noite se arrastava com a casa cheia e eu totalmente dedicado a mesa em questão. Tarde, bem tarde, o cabra pediu a conta. Aff! Mas, Maria da Conceição é mulher esperta, que não se deixa controlar e, estava eu aguardando a nota em frente ao caixa para levar na dita mesa, quando sinto um encontrão atrás de mim e ela, muito rápida, coloca um papel no meu bolso de forma muito discreta. Não preciso dizer que a ousadia virou lenda no restaurante, entre os garçons e alguns frequentadores assíduos. Mas, isso não importa. O fato é que essa mulher quase acabou com a minha vida. Não morri de desgosto por detalhe.
Mal fechou a primeira semana que estávamos juntos, fui com todas minhas tralhas e cacarecos de muda para o apartamentinho dela. No Largo do Machado, como já referi. Tudo maravilhoso, Maria da Conceição e a Zona Sul do Rio de Janeiro. Próximos da praia e do meu trabalho. Pela primeira vez, fui habitar a parte mais bonita da cidade. Embora o apartamento fosse bem mais simples, muito mais, que o meu em Jacarepaguá. Não sei se foi intuição ou pouca fé, mas continuei pagando o aluguel do imóvel que não habitava mais. Minha finada irmã Zina costumava repetir que Deus nos manda recadinhos, sussurrando em nossos ouvidos quando sonhamos. Seria uma explicação bem plausível para mim…se eu acreditasse Nele.
Minha rotina com essa mulher era sinônimo de bem-aventurança! Acordar toda manhã com ela a meu lado me trazia a sensação de merecimento. De nirvana. Muita paz. Amava com meu corpo e com minha alma. Era uma transmutação espiritual. Coisas que só o amor possibilita. Quem um dia amou de verdade, já sentiu esse desvario. Dos dias serem mais luminosos, de procurar sorrisos nas pessoas, de sentir esperança cega e súbita na humanidade. Eu amei esse amor e essa metamorfose. Eu tinha tanto amor dentro de mim, que eu precisava tentar distribuir um pouco desse amor ao mundo e esperar que parte dele, voltasse um dia quando eu precisasse. Eu me surpreendi com minha personalidade renovada, mais generoso, mais gentil, talvez.
Tudo que ela me pedia eu buscava atender. “Amorrr, vontade de comer um filé parmegiana hoje…hummmm…traz pra mim?” Lá vinha Dos Santos, no ônibus, voltando para o apartamentinho, com o filé preparado exclusivamente para ela, escorrendo molho da quentinha. “Amorrrr, vi uma sandália linda naquela Galeria ali da Praça, tá em liquidação, pena que não tenho dinheiro agora…” Lá ia Dos Santos, comprar a dita sandália tamanho trinta e sete e com plataforma. “Amorrr, quero ir ao cinema..” Amor isso, amor aquilo e minha remuneração mensal cada vez menor. Não reclamava de nada. Ela me compensava qualquer esforço. Maria da Conceição me sorria sempre, embora trabalhasse em pé o dia todo num hospital municipal, como auxiliar de enfermagem, estava sempre de bom humor. Não ganhava como merecia, mas parecia gostar do que fazia. Ao menos, não reclamava.
Vivíamos a nossa edênica relação amorosa, sob a minha ótica, é claro, tranquilos e harmoniosos por vezes, impulsivos e instáveis muitas vezes. Como tudo na vida, meu paraíso tinha data para acabar: 18 de agosto de 2016, há quase quatro anos atrás. Depois de um ano e três meses de gozo e paixão, vi minha alegria desvanecer-se e a angústia tomar conta da minha vida.
Fecho os olhos, tento esquecer.
– III –
Ruína e pesar
Acendi meu primeiro cigarro da manhã e coloquei o café para passar. Meu primeiro pensamento da manhã foi o casal do ônibus. Adormeci no trajeto e não pude verificar onde desembarcaram, quando acordei já estava perto de casa em Jacarepaguá. Uma pena! Para mim, é a mesma sensação da perda do último capítulo de uma telenovela. Gosto de colecionar historietas da vida real. Assim, quando o ônibus para próximo a um prédio alto, à noite, fico extasiado tentando adivinhar o que se passa por trás das janelas iluminadas e, se alguma cortina se move, tento espiar logo para dentro do cômodo antes do ônibus retomar o percurso. No trânsito, os carros ao lado revelam histórias que podem render um livro e tanto. Brigas, assaltos, beijos, sexo, tudo! Também, no restaurante, já colecionei histórias incríveis de amantes, traições, projetos novos, contratos lícitos e ilícitos, dramas familiares e reconciliações emocionantes. Não se imagina tudo o que acontece por aí! Os seres humanos conseguem ser atraentes e repulsivos pelas mesmas razões.
Depois do almoço no boteco de sempre, fui buscar meu cafezinho na Padaria do Juarez. Só, então, lembrei que nada ia bem por lá. Meu cotidiano me fez abstrair o drama misterioso do padeiro. Gostaria de poder ajudar o rapaz, mas para isso a plena ciência do acontecido era essencial. Fiquei estarrecido ao me dar conta que o único ruído de pessoas naquela Padaria vinha da televisão pendurada no alto, no canto da parede, que ficava ao lado da porta de entrada. A freguesia do Juarez, cúmplice em seu mal-estar, conservava o mesmo silêncio cavernoso do dia anterior. Isso, não ajudou em nada minha discrição e serenidade. Parecia que iria explodir se nada me fosse revelado. Tentando manter meu controle, solicitei ao próprio dono do estabelecimento outro café. Conhecendo meu comportamento de anos, Juarez estranhou e, tentando demonstrar normalidade, questionou se eu estava bem. Ah! A bondade desse homem! Rapaz bem jovem, não tinha mais de trinta e cinco anos. Deixei a elegância de lado, criei coragem e fui perguntando do que se tratava, afinal, aquela perturbação que deixava todos nós aborrecidos e alarmados. Ele me olhou, então, surpreso, com os olhos arregalados, tentando entender como as pessoas sabiam que ele estava passando por momentos difíceis. Sentimento estranho esse. Temos a habilidade de supor que não fazemos diferença na vida dos outros, como se nossas ações ou omissões, triviais ou não, tivessem alcance apenas sobre nós ou quem está próximo e jamais tivesse efeito na vida das demais pessoas. Muitas vezes, nos julgamos tão invisíveis. Mas, no fundo, não deixa de ser pretensão ou egoísmo…próprio do bicho-homem. A felicidade de outrem pode parecer loucura para uns, privilégio para outros. Tristezas contagiam ou não. Se você não é feliz, melhor não julgar.
Juarez padecia de um mal chamado agonia. Alma vazia de quem sofre sem ter o poder de reagir. O pai, em São Paulo, estava hospitalizado com sintomas muito parecidos com os sintomas que os telejornais começaram a gritar diariamente. Seu Edmundo Gomes não podia receber visitas, estava isolado. Talvez, precisasse ser entubado para melhor respirar. A família era pequena, o pai e o irmão. A padaria demandava a presença do dono, nunca havia pensado em colocar um gerente, alguém para compartilhar. Juarez nunca tira férias, nunca se afasta, nunca. Pai e irmão costumam vir ao Rio para férias e datas especiais. A situação era extraordinária demais para ele. A ausência do pai seria emocionalmente catastrófica. Quando terminou o relato, o rapaz caiu num pranto de dar dó!
Eu que pensava se tratar de um problema de “ébrio” tal e qual Vicente Celestino, fiquei estarrecido; não havia nenhuma ingrata na vida previsível de Juarez. Consegui, com muito esforço, dar meia palavra de consolo. A notícia me rendeu um pavor repentino e a situação do jovem me pareceu sem solução. Fui incompetente no quesito solidariedade. Terrível! O verão se despedindo no Brasil e o vírus desembarcando como turista nas vésperas do carnaval. Eu e todos os outros que estavam em silêncio na Padaria nos entreolhamos e pensamos a mesma coisa: isso é real, podemos todos morrer!
Gaguejei umas palavras idiotas sobre apoio e “força aí” e saí correndo. Completamente tonto. Minha cabeça parecia ter girado mil vezes como a menina do filme “O Exorcista”. Consegui pensar de forma tresloucada, sem raciocinar direito, sobre várias coisas ao mesmo tempo. Pensei no restaurante, na última vez que senti dor na garganta, em Juarez, no Brasil, no Amilton sem H, na mulher do Amilton sem H, nos meninos que vendem queijo na praia, na farmácia, em vitaminas, no tal Bolsonaro, no dono do bar, nos cobradores dos ônibus, nos motoristas dos ônibus, nas freguesas velhinhas de Copacabana, nas favelas, no carnaval, na praia, nos hospitais e na Maria de Conceição; não, necessariamente, nessa ordem. Eu precisava sentar e pensar. Pense Dos Santos, pense, você sempre sabe o que pensar e como fazer. Eu não sabia o que fazer. Senti muito medo e fui trabalhar.
-IV-
O corona
A cada manhã a situação no Brasil fica mais alarmante, depois de três semanas, tivemos a pior notícia do pai de Juarez. Ficamos todos mais devastados do que já estávamos. A padaria de luto fechada e sem previsão para reabrir. Os noticiários já anunciavam quase cem brasileiros doentes. Já cancelavam eventos grandes no país e estudavam a breve paralisação das escolas, a Europa ainda é o epicentro do coronavírus.
Sinto falta dos meus cafezinhos na Padaria, não só pela qualidade incomparável do café, mas pelas conversas saudáveis que costumava consumir alguns minutos dos meus dias. Lembro que, ao revelar certa vez o final da minha patética história com Maria da Conceição ao Juarez, ele me confidenciou detalhes da relação amorosa com uma grã-fina do Leblon. A relação era improvável, e não por algum preconceito estúpido de estirpe como se poderia supor. Bem longe disso. A felizarda moça estudante de uma universidade privada, não fazia nada além de frequentar as aulas, ir ao cabelereiro e correr na praia. Tinha um sorriso de travar a Vieira Souto, um corpo bem trabalhado e uma pele dourada que contrastava com cabelos de sereia. Juarez sucumbiu ao canto da mitológica figura e passava o dia com o cronômetro cerebral ativado, diminuindo o tempo mental para reencontrá-la. Os encontros eram recheados de beijos e suspiros de causar inveja a Nelson Rodrigues. Viviam agarrados e as despedidas eram comparáveis aos piores melodramas. Como era de se esperar, a rapariga era bem relacionada na Zona Sul e, por isso, eram convidados para eventos em casas noturnas e bares quase todas noites. Festas e festas e Juarez sempre presente. E atrasado! Dono da Padaria mais movimentada de Jacarepaguá estava quase se transformando num pobre zumbi. Acordar muito cedo, ligar o forno, preparar o pão, gerenciar empregados, atender freguesia, pagar contas, cuidar disso e daquilo e, se não bastasse, a própria Afrodite exigindo seus direitos. Claro que era sempre o último a chegar nos eventos para o descontentamento solene e inconsolável da parceira. E, quando tudo pode ser pior, não faltava alguém para reforçar o pesadelo afirmando escandalizado que Jacarepaguá é, de fato, bem longe. Isso, sem esquecer a gargalhada no final. Juarez sentia-se esquisito naqueles lugares. Quase um invasor sem autorização para frequentar. Os amigos da Tijuca com os quais Juarez costumava passar os momentos de lazer nunca perderam a oportunidade de zombar do endereço da Padaria. Não entendiam como ele foi abrir um negócio tão fora do bairro e que o obrigava a atravessar a cidade para se deslocar. Mas, vindo daqueles mauricinhos zona sul incomodava muito a individualidade do meu amigo. Qual não foi a surpresa que, sentados num bar em Ipanema, uma amiga de fora da cidade foi cumprimentar a amada do Juarez. Essa, educadamente, apresentou o namorado para amiga. E, sem motivo e sem ter sido questionada, se adiantou para explicar que o namorado mora na Tijuca e tem um negócio perto da Barra, que rendia bastante. “Perto da Barra? Recreio?” Escutou Juarez admirado. “Não. Jacarepaguá.” Juarez entendeu todas aquelas interjeições e reagiu ofendido: “Madureira. Bem próximo à Madureira!”. Não preciso ser mais claro para afirmar que os valores da sereia ultrapassaram a paciência do padeiro de Jacarepaguá, bem próximo de Madureira. Era sono demais, cansaço demais e bobagens demais. Juarez sentiu uma preguiça absurda de continuar o relacionamento com a beldade. O amor assim como veio, se dissipou em segundos. Houve insistência e uma certa incredulidade da parceira, bastante segura com os dotes físicos que é portadora; infectada, entretanto, por valores decadentes. Assim, por uma insuperável incompatibilidade de horários e valores a relação com a bela princesa chegou ao final.
Hoje, Juarez chora a perda do pai. Relacionamento que se impõe acima de qualquer valor, critério, gênio ou humor.
O cenário das ruas do Rio já se mostrava diferente. A rua menos agitada, a Padaria fechada, algo estranho no ar. Os vizinhos, aos poucos, iam se escondendo, um depois do outro. No almoço do bar, percebi muitas mesas vazias, mais do que o normal. O trânsito estava mais tranquilo também, muitos carros, mas todos em movimento. Percebi que fazia mais de uma semana que não cruzava com meus vizinhos Amilton e mulher e, com toda essa confusão com Juarez, não consegui descobrir nada sobre eles.
Peguei o ônibus para Copacabana lotado como sempre. Isso começou a me incomodar. Andei duas quadras e quando cheguei, mais cedo, no restaurante uma reunião preparada me esperando. Todos sentados nas mesas, com a porta fechada. Duas horas mais tarde, a primeira ruptura da empresa, foram demitidos todos garçons. Permaneceram empregados, além de mim, duas pessoas da cozinha e o gerente. O meu trabalho se manteve como um reconhecimento velado de um direito de posse. A minha vida e a vida daquele empreendimento se misturavam. Impossível nos separar. Fiquei muito grato por isso, o que não foi suficiente para evitar minha indissimulável emoção. Ficou bem claro que o restaurante passaria, em breve, a funcionar somente com entregas e que nosso público, a cada dia, diminuiria mais. Foi uma perturbação essa novidade. Ver aqueles jovens garçons saindo cabisbaixos foi muito triste. Desconheço a vida pessoal de cada um, se têm família, dependentes. Trabalhei anos com alguns deles, não acreditei que isso acontecia. Depois disso, abrimos as portas para esperar os clientes e foi, conforme o previsto, um pesadelo. As horas não passavam e tivemos apenas seis mesas durante toda uma noite muito quente e estrelada de uma quinta-feira em Copacabana. Era sua excelência, o coronavírus, se apresentando ao Rio de Janeiro.
No final do mês, a cidade entrou em quarentena por tempo indeterminado.
– V –
Isolados
O isolamento social determinou que restaurantes funcionassem, apenas, com serviços de entrega. Nada restava a um velho garçom a fazer nessas condições, me resignei a ficar isolado contando, humildemente, com minha remuneração, sem trabalhar. Minha vida e minha rotina desmoronaram junto com a minha segurança. Isolado dos meus amigos, sem amor, pobre de sentimentos. Sozinho. Há bastante tempo, conclui que tudo que acontece conosco tem um certo propósito. Perdi meus pais ainda adolescente e vim morar no Rio de Janeiro em busca de trabalho. Nada original. Mas a vida, muitas vezes, parece não ser muito original. Então, encontrei o emprego, diga-se que fiquei nesse mesmo emprego até os dias de hoje, que me trouxe estabilidade e autossuficiência. Mas, o que realmente importa é que, através dos anos, vamos nos metamorfoseando e mudando valores. Nossa capacidade de se adaptar é absurda. Não sou – e jamais serei – detentor de personalidade inquieta, entretanto fui obrigado a entender e perseguir a tal estabilidade. Fiz disso minha maior ambição. Aprendi a ser forte e apreciar a segurança. Eu precisava aprender a contar apenas comigo, apesar de viver numa cidade em que a camaradagem impera, que é linda, mas é violenta; com muita gente pobre e com muita gente rica; com muitas oportunidades e muito desemprego.
Ando, ultimamente, igual a um passarinho engaiolado, submisso, conformado e cantando. Canto à vida e à resistência. Ouço música. Leio. Sobrevivo. Perco, a cada dia, minha mania de ser um retratista. De analisar os comportamentos e sentimentos alheios e, com eles, construir as mais loucas histórias, de assistir minhas próprias novelas e ler meus pequenos romances; esse é meu traço, é o que me individualiza. Não sei mais quem eu sou. Viver em comunidade, usar transporte público, servir refeições, caminhar pelas ruas, observar, ler as feições, reconhecer os sofrimentos, identificar as plenitudes e perceber o peso de almas vazias. Isso sempre foi minha vida. Minha solidão acompanhada da minha capacidade de sonhar e ser criativo. Ser humano.
Hoje tenho, apenas, minhas duas janelas para observar o mundo. Quase não consigo mais espiar as janelas dos outros. Vejo, em frente poucas pessoas nas ruas. Três sobrados antigos, casas comerciais fechadas e prédios bem distantes. Quase nada de automóveis ou ônibus. Não imagino histórias quando não capto sentimentos. Isolados comprometemos a nossa sensibilidade. Os olhares, os cheiros, os abraços determinam nossas atitudes, nossas devoções, nossas fascinações ou, até mesmo, nossas antipatias. Estou me reconstruindo ao me despir de todas as minhas necessidades sociais. Que tipo de pessoa conseguirei me tornar depois que tudo isso passar. Tenho dúvidas quanto ao mundo que iremos conhecer (ou reconhecer).
Havia um mundo de desperdício antes disso tudo, muitos automóveis nas ruas, aviões nos céus, plásticos nos mares. O histerismo coletivo do consumo pelo consumo. Em pouco tempo, deixamos tudo isso para trás, tudo que pertencia ao mundo que conhecíamos. Em poucos dias, me tornei um asceta dentro da minha própria casa. Não moro em um mosteiro, mas é bem parecido. Acordo, acendo um cigarro e ligo a televisão. Tomo café com notícias diariamente. Não costumo rezar, mas para não dizerem por aí que não fiz minha parte, resolvi usar as poucas velas que havia na minha cozinha para presentear São Jorge, o santo padroeiro da minha cidade, e esperar que, na luta contra o mal, que prevaleça o justo. A ameaça da doença, me faz suplicar pela cura. A minha vida, parece receber um ágio por dia e quando acompanho as notícias, que escorrem em forma de sangue na minha televisão, penso estar dentro de um pesadelo, que vai terminar quando acordar.
Ontem fui surpreendido com o som de um trompete. O instrumento parecia ser tocado pelo próprio vento, já que não era possível, da minha janela, identificar o generoso vizinho. De forma amadora, mas impecável, o músico ofertou as mais diversas composições musicais, principalmente, a popular. O samba-canção, a bossa nova e, até o gracioso xote nordestino. Quando a música terminou, a vizinhança do prédio e de outros prédios das redondezas aplaudiram e gritaram vivas! vigorosamente. Foi um legítimo agradecimento à arte prestada de forma generosa por alguém que não tive o prazer, sequer, de um dia cumprimentar. Com a crise você cresce em expectativas, de que grande parte da humanidade observe e retribua esses delicados detalhes de benevolência. A arte faz a diferença, mas a bondade eleva os corações. O trompete fez meu coração bater mais forte, a música me conduziu para momentos belíssimos que fui capaz de participar, mas as palmas, os gritos, o agradecimento…me fizeram sentir parte de um todo. Eu não estava mais sozinho. A solidão era de todos. E o músico e a música eram para nós. Humanizados e menos feridos, creio que todos puderam dormir melhor.
– VI –
Fidelidade
Amanheci, hoje, com o rádio ligado num programa musical. Enquanto preparava o café, prestava atenção na melodia que revelava um romance estupidamente rompido. A canção era considerada já antiga, anos 90.
Havia um bar com música ao vivo na Cidade, perto da Avenida Rio Branco, que costumava ir com Maria da Conceição às terças-feiras, quando estava de folga e era final de plantão para ela. Ficávamos horas sentados ouvindo o cantor interpretar um magnífico repertório de músicas românticas brasileiras. Pedíamos umas tulipas de chopp para cada um acompanhadas de uma porção de sardinhas fritas e, se o dinheiro permitia, um jantar requintado de arroz com brócolis e polvo assado. Esse dia era sagrado e, por ser todinho nosso, sem temer a blasfêmia, o denominávamos dia Dos Santos. Eu sempre me dava bem depois dessa noite.
Então, nossos momentos juntos eram profanos para o mundo, mas sagrados para mim. Tanto que, até hoje, não consigo entender o significado daquelas palavras escritas no bilhete, sem explicação, sem motivo, apenas se despedindo. Cheguei uma madrugada depois do trabalho, o armário estava vazio das roupas dela, a cama revirada, comida fria no fogão e o bilhete grudado no espelho do banheiro com fita adesiva dizendo que ela nunca me esqueceria, mas que precisava ir embora. Não me procure. Adeus e boa sorte.
Recebi um golpe que me faltou o ar por mais de duas horas. Estava tão cansado do trabalho, voltei para casa pensando no conforto que me esperava na cama. No corpo cheiroso que eu poderia abraçar e me aconchegar. Em como era feliz, que a vida era justa, obrigada meu Deus.
Custou-me dez quilos, dois anos e muitos comprimidos para refazer minha mente depois desse pesadelo. Foi um golpe à minha ingênua alma de romancista de cordel. Pensava ser experiente em interpretar emoções, mas com Maria da Conceição me senti como um estúpido. Iludido com as artimanhas sedutoras dela, enfeitiçado e cego pelos trejeitos, aprisionado por minhas próprias expectativas.
Adeus e boa sorte! Como a vida por ser banal.
Essas palavras ficaram ecoando na minha cabeça por um tempo absurdo, foi uma penitência! Talvez, pelo uso com finalidades indecorosas do meu sobrenome naquelas nossas e voluptuosas terças-feiras. Pode ser. Pode ser, também, que ela não prestasse ou que nunca tivesse sentido nada por mim, que não fosse por algum interesse que eu desconheça. Sua vadia!
Nunca procurei Maria da Conceição. Pus minha dignidade na mochila, meu orgulho na lixeira e voltei para meu apartamento (hoje, percebo que foi intuição).
Imagino que ela ainda trabalhe no mesmo hospital, sei que é bastante grata por aquele trabalho, por isso sei que ela não abandonaria. Tantas lembranças…. devo me considerar feliz por ter capacidade de amar? Hospital!
Acendi um cigarro e me servi de mais café, ao me dar conta que Maria da Conceição deve estar vivendo o pior dos piores momentos. Atualmente, trabalhar em hospitais requer mais que vocação ou salário, requer abnegação.
Andei de um lado para outro da sala, apaguei o cigarro e acendi mais um. Maldição! Não me reconheci naquela ansiedade. Analisei prós e contras, abri as janelas para olhar para o mundo, tomei banho, comi uma fatia de pão dormido com manteiga. Andei mais um pouco. Analisei. Desisti, fui pegar o telefone celular no quarto.
– Hospital Público Municipal, bom dia!
Meu coração fazia muito barulho. A telefonista iria perceber. Coloquei a mão esquerda sobre o peito para tentar me acalmar.
– Bom dia, por favor, gostaria de falar com Maria da Conceição, auxiliar de enfermagem do Bloco Cirúrgico, ela se encontra?
Silêncio.
– Quem está falando?
– Luís Carlos B. dos Santos, sou … amigo, amigo dela.
– Um momento…
Uma música repetitiva começou a tocar por uma eternidade.
– Qual o nome completo da pessoa com quem o senhor deseja falar?
Nome completo da pessoa? Dois segundos de pânico se passaram.
– Ah! Ok. Maria da Conceição de Ramos
– Sinto muito senhor. Não posso ajudá-lo.
– Como não? Ela não trabalha mais neste Hospital? Poderia, ao menos, dar um recado?
– Lamento informar senhor que a Auxiliar de Enfermagem Maria da Conceição Ramos faleceu essa noite vítima da Covid-19, desculpa…
Desliguei o telefone.
Fiquei sentado no mesmo sofá, na mesma posição, com o telefone na mão até anoitecer.
Senti sede, vontade de urinar, fome e fui obrigado a sair daquele cativeiro. Uma necessidade absurda de gritar que me consumia a garganta. Uma mistura de raiva, de autopiedade e arrependimento fazia minha pele arder. Eu, que nunca me permiti ficar exposto a sobressaltos, que sempre prezei uma placidez diária, um cotidiano sossegado me vejo, perdido, num cemitério arranjado com vários caixões a serem enterrados juntos.
Todas as perguntas que eu queria fazer permanecerão, desgraçadamente, sem respostas. Aquele amor não correspondido, que estava bem ocultado em algum lugar do meu corpo, volta à flor-da-pele sem autorização. Uma dor profunda me fez curvar. Permaneci fiel à Maria da Conceição mesmo depois de morta. Não tive zelo. Ela se foi, está lá numa vala. Sem ninguém. Sem amor, sem cuidado.
Desculpa!
– VII –
Resistência
Minha solidão e desamparo estavam me deixando doente. Olhei meu rosto no espelho e não me reconheci. A barba por fazer, o rosto cadavérico, mal alimentado. O pijama sujo, o apartamento revirado. Telefonei para o bar e o dono abria uma exceção para mim. Deve ter percebido um tom de desespero na voz.
Precisava caminhar um pouco na rua, sentir o ar fresco no rosto.
A lembrança de Maria da Conceição aos poucos ia se dissipando da minha mente, o que me incomodava, um pouco. Queria guardar o rosto dela. Não seria justo amar tanto alguém e não honrar o amor com uma lembrança.
Peguei a máscara que havia adquirido na farmácia da rua logo que iniciou a quarentena e saí. Estava quase atravessando a rua na esquina e me deparo com seu Amilton sem H e senhora! No mesmo momento, pude perceber a expressão de alegria estampada no casal. Sempre foram solenemente formais, estavam – para minha surpresa – alegres e sadios:
– Senhor Dos Santos, como está?
Mantinham uma distância segura e usavam máscaras.
– Superando a pandemia e meus demônios. Mas, vejo que os senhores estão muito bem…
– Muito bem, obrigado!
Seu Amilton virou-se para a esposa e apontando para ela com a palma da mão para cima em direção ao coração, falava numa alegria invejável:
– Minha Amélia ficou vinte dias no hospital Senhor Dos Santos. Num morre, não morre. Respirando em tubos. Mal posso crer que estamos fazendo nossa caminhada diária juntos. Está se recuperando bem. Fomos muito bem atendidos no Hospital Público Municipal apesar de toda dificuldade que a cidade passa agora com a insuficiência de leitos e respiradores. Ela teve muita sorte. Foi bem cuidada! Os médicos, as enfermeiras, até as auxiliares de enfermagem…todos dedicados! Eu passei por momentos absurdos de solidão. O Senhor não imagina, solteiro deve ser bem diferente, não é? Bem mais fácil.
Não acreditei que levei um tabefe desses…! Ao menos, agora, sabia o nome da convalescente. E, continuava:
– Que crise estamos, não é mesmo? E esse nosso Presidente! Quer enfiar a tal cloroquina no nosso rabo! Que absurdo isso. Eu já fui impondo lá no hospital, quando internei Amélia gritava aos quatro ventos que ela não aceitaria essa tal de cloroquina que querem nos obrigar a tomar. Uma vergonha! Esse ditadorzinho de merda que engula todas as cloroquinas e deixem os brasileiros sobreviver a essa desgraça sem nos envenenar. Não bastasse a cloroquina, a falta de respirador, essa merda de vírus, ainda essa desgraça de Presidente. O senhor votou em quem Seu Dos Santos?
– Ah! Eu não votei …
– Imaginava! O Senhor sempre nos pareceu uma pessoa íntegra, do bem! Se cuide e não tome essa tal cloroquina, por nada! Foi um prazer lhe reencontrar Seu Dos Santos. Passar bem.
E se foram.
E eu, mais tonto ainda, fui almoçar.
Almocei em silêncio e retornei ao apartamento tentando digerir e aceitar tudo: esse momento, essa desgraça e as palavras inesperadas do meu vizinho. Os jornais, as notícias, o povo, tudo me deixando louco. O que estamos assistindo trancafiados? O Brasil, finalmente, mostrando a cara. Seu Amilton tinha razão. Pensávamos um país diferente, problemático, mas com camaradagem. Sem ódios ou terremotos. Onde o negro, o branco e todas as cores se encontravam para falar de futebol e brincar no carnaval. País de riquezas mil, quanta pobreza meu Deus! Todo dia assistimos inconformados, sentados em nossas gaiolas, aos caixões feitos às pressas, sendo jogados nos buracos horrorosos cavados às pressas, para enterrar quem morreu sem se despedir, sendo saído da vida, às pressas. Quantos horrores e quantas lágrimas que foram derramadas por esse mundo. Mas, aqui, nós, os brasileiros, não estamos morrendo de dor apenas. Estamos morrendo pela indignidade a que somos expostos. Somes pobres, classe média, classe rica e muitos que nunca tiveram classe alguma, todos mortos! Sem poder respirar, sem poder gritar! Nada a reclamar. O respirador não vem, nem virá! Quem procura por eles? Nosso corpo vale menos que um punhado de votos. O discurso do ódio prepondera. São esses nossos dias, com noites sem dormir. Esperamos nossa vez e rezamos para que todos, nossos amigos, familiares e nossos amores fiquem bem. Lamentamos, hoje, nossa nacionalidade, como um filho que se resigna à canalhice do pai. Estamos órfãos de tudo e de todos. Desamparados. Que não nos falte a fé, a honra, os amigos e a família, que não nos calem! A pandemia nos assombrando, mudando à fórceps o nosso olhar sobre o mundo e sobre as pessoas. Talvez tudo mude depois, para pior ou melhor, ainda não sabemos, mas com certeza a vida da maioria de nós será diferente. Cumpre a cada um descobrir. Refletir. Com o olhar direcionado para o Brasil, muitos dirão que precisamos mudar os políticos. Mas, o povo brasileiro que elege seus políticos. Talvez, o regime de governo. Talvez. O que realmente precisamos transformar? Eu me refiro a sentimentos. Especialmente, àquele essencial a qualquer ser humano – a empatia. Sem empatia não há nação que possa ostentar as palavras ordem e progresso como bandeira. Sem empatia, padeceremos do individualismo cruel, da sordidez e da prepotência. Sem fraternidade o que se tem é a aversão ao outro, o desprezo, o endurecimento. Nos tornamos divididos, tristes. Nossos sorrisos, nosso carisma, nossa hospitalidade e nossa alegria sempre foi nossa marca. Apesar dos políticos e do vil metal, éramos uma nação. Precisamos evoluir, sem perder a nossa cara. Precisamos aprender a investir em educação, a socializar, amparar, vacinar e tantos outros verbos. Só não precisamos colonizar ou ser colonizados. Precisamos amar! Hoje, eu sou resistência.
FIM
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