Jornadas
F. A. Sassi
O Túnel – Primeira Etapa
Ainda sonolento, ele olhou na penumbra ao fundo. Estava deitado sobre uma vegetação morta e seca que um dia cresceu ao lado da água corrente. Aquele pedaço do túnel era alargado de forma que havia espaço suficiente para ele montar seu abrigo. Tinha plena satisfação em encontrar o lugar ideal para dormir. Era a sua distração preferida, fazia dela um projeto, encontrando os fatores mais adequados para o acampamento. Dormir era importante: era ao dormir que se sentia vivo e nos sonhos que ele podia sentir. Da última vez havia sonhado com formas que se movimentavam diante de si e se expandiam para que ele pudesse explorá-las e senti-las, cada uma daquelas formas trazia uma sensação no seu corpo diferente das outras e ele as abria, ora prazerosas, ora doloridas, mas todas lhe davam o prazer de sentir. Ele juntou os seus trapos, pegou o pouco que encontrou para alimentar-se na escassez da água escura, lavou-se e continuou a seguir a corrente. Por sempre ir naquela direção jamais tinha ideia de quanto teria percorrido. Não havia luz, dias e noites ou acontecimentos e, assim, não havia tempo. A escuridão reinava e o barulho da água que lhe guiava nesse eterno corredor. Depois de tanto caminhar, voltar não mais era alternativa, se parasse enlouqueceria então a única alternativa era continuar andando. Já não existiam memórias de algo além do túnel, mas a sua personalidade, embora limitada pela pobre experiência sensorial era muito criativa e temia em extrapolar o escuro do túnel imaginando as cores do que haveria no além. Algumas vezes, após um sonho vívido tinha quase alucinações e imaginava-se andando por entre densas paisagens naturais e vastas coleções de água. Assim quase nunca entediava-se. Desenvolveu formas eficazes de manter os pensamentos ocupados. Conversava com as paredes do túnel até a exaustão, filosofando sobre teorias da origem do túnel e até de universos feitos por caminhos paralelos que se encontravam em um ponto específico, no qual todas as correntes de águas se transformavam em um grande rio, que logo fluía para diferentes túneis recomeçando um novo ciclo. Seus pensamentos eram também sua companhia, seu conforto e resignação. Alguns pensamentos eram mais insistentes e, às vezes, deixavam de ser brincadeira para tornar-se crença. Tinha, em algum ponto, desenvolvido a ideia de que tudo o que havia por lá poderia ser encontrado se continuasse a caminhar para sempre. Isso porque volta e meia encontrava objetos estranhos entalados na lama do túnel, abandonados ou mesmo perdidos em outras épocas distantes. Indagava-se no escuro. Eram bugigangas esquisitas que ele não tinha noção da utilidade, restando à sua imaginação fazer a sua parte, criando a estória dos objetos: uma jarra metálica nasceu da água que cansou de ser água, um colar de pedras da areia que se enrolara tentando escapar do túnel, uma faca de vidro que foi um dente de alguma criatura mitológica, um guardanapo de seda que se formou quando uma planta morreu de amor por uma lagarta, e assim por adiante. Seus pés tateavam no escuro, atentos ao toque de algo que não lhe fosse familiar e quando encontrava algo novo celebrava carregando o objeto e exibindo-se para as paredes úmidas do túnel morrerem de inveja. A essa altura, já havia uma pequena coleção com os seus pertences favoritos um tesouro que carregava sempre em um pano rasgado amarrado com esmero no seu pescoço. Desenvolvia um laço afetivo e social com as suas tralhas, e afinal era possuir uma bagagem que lhe fazia ser um viajante. Quando tudo sempre se repete da mesma forma, novas experiências podem ser assustadoras. 957, 958, 959…Às vezes, quando muito distraído, ou até mesmo sem motivo decidia correr, sempre contando os seus passos até cansar e poder acampar. Parou de correr em 960. Tinha os ouvidos bem acostumados a entediante paisagem acústica, mas naquele momento pensou ter escutado algo estranho. Um ruído vindo do teto. Passou a caminhar novamente. O barulho voltou, e logo desapareceu. Seria uma alucinação? Decidiu acampar ali mesmo. No meio de um sonho acordou assustado pelo barulho que voltava, agora grave e rítmico. Parecia o barulho de seus próprios passos que se aventuravam para fora do túnel e agora voltavam correndo, com medo, para os seus pés. Sentiu-se agitado e nervoso, começou a transpirar: um pensamento perigoso surgia das trevas da sua essência, desafiando a sua razão. Não conseguiu dormir então voltou a caminhar. Usou suas melhores táticas de distração. Contava-se para si a história das minúsculas civilizações invisíveis que moravam do leito do rio trabalhando exaustivamente para fazer a água do rio andar em correnteza. Mas, quando o barulho voltava perdia-se no enredo e o certo pensamento voltava a lhe perseguir. Ele decidiu perguntar para as paredes: será possível que um barulho tenha sido originado fora do túnel? Não, isso era loucura sem sentido. Não havia nada além daquelas paredes ele sabia bem. O pensamento desconcertante lhe tirou o sono de forma que havia três jornadas que não dormia. Estava sem fôlego, mas começou a correr. Tentava fugir do pensamento atrevido e convencer-se que a vida era tão simples como andar naquele corredor inóspito, o que estava além não lhe dizia respeito e não lhe tinha utilidade. Logo mais perdeu as forças e tropeçou na correnteza. Chegou a lutar batendo seus braços de forma atrapalhada mas faltou-lhe o ar e por longos períodos debatia-se só para engolir mais água. Notou que muita água escorria pelas paredes do túnel e o que o rio subia e ficava mais profundo. Sem sucesso de deixar a corrente segurou seus objetos contra si e deixou-se ser levado. Assim ficou quase imóvel até admitir: há algo lá fora, quem sabe existe alguém além de mim. Há mais que minha vida, há mais que meu caminho, há mais que a minha escuridão. Há um destino e uma possibilidade. Não posso perecer aqui, não agora, não agora que sei disso. Delirando deu uma última braçada em pânico, mas o cansaço lhe venceu e ele adormeceu. O túnel foi lhe levando como boia, agora não mais por um caminho retilíneo, mas sinuoso. Não havia mais lama ou vegetação, só água, a correnteza se tornava cada vez mais forte. O rio afunilou-se e o ar ficou sóbrio. Após uma curva rápida e fechada a água brilhou como prata. A luz penetrou no túnel, queimando os olhos virgens do viajante, que acordou de súbito pela primeira vez.
A Queda – Segunda Etapa
Infelizmente, ao destino não convém os nossos conformismos. Foi a mando da necessidade inata de cumprir sua jornada no mundo que ele foi expelido da sua caverna, seu ninho, e veio à luz como se tivesse renascido. Era autossuficiente, simples, propositalmente cego e ignorante, não necessitava esperança ou planos, não queria distrações, não contava o tempo e era perfeitamente satisfeito com as obviedades da sua existência. Essa personagem lhe protegia contra as complexidades desnecessárias que reinavam lá fora. A saída do conforto lhe doeu como se tivesse uma ferida exposta na pele. A luz lhe molestava os olhos e por isso os mantinha fechados com força. Uma quantidade colossal de água lhe cercava, mas, assim como seu próprio corpo, caia em silêncio, pois no ar nada importava, nem mesmo o peso. Os seus pés e pernas tateavam sem roteiro ensaiado, a ausência de chão lhes tirava o propósito, restando-lhes apenas brincar livre e inutilmente. Os braços desistiram de buscar algo para se segurar e resolveram ajudar os olhos que se afogavam no turbilhão de água. Quando já estabilizado, ele enxergou pela primeira vez. A primeira visão foi a de um corpo apagado, parecido com o seu, flutuando a sua volta da mesma forma que um satélite. Como de costume, não questionou, mas se pôs a observar o fenômeno, deixando-se inebriar pela dança do seu companheiro de queda, nela estava refletida a sua própria verdade. O segundo planador finalmente abriu os olhos, com dificuldade e dor aparentes. Quando se cai o mundo para, ou melhor o mundo continua, mas somos transportados para uma realidade paralela, na qual o próprio tempo deixa de existir e por lá nada mais acontece. Então quando caímos, caímos para sempre. Cada instante era eterno, cada olhar possuía uma tensão interminável. Encaravam-se sem expressão, estavam hipnotizados pelo magnetismo que lhes atraía. Sem saber, tinham parado o tempo mais uma vez: no deslumbre os momentos também eram imortais. O fascínio ofuscou a queda. Agora não mais caiam, mas sustentavam-se na sedução um pelo outro. Perdiam-se, não lhes incomodava mais a luz, a água, ou até mesmo a ausência da gravidade. A curiosidade lhes aproximava no ar. Estenderam os braços e descobriram que podiam se tocar. Primeiro a ponta dos dedos, depois as mãos, os braços, o peito, as pernas, agiam instintivamente. Pairavam abraçados no ar. As gotas de água se afastaram na direção oposta. Não restava mais nada ali. Tornavam-se espelhos paralelos que se projetavam ao infinito. A mais perfeita comunicação, desguarnecida de qualquer verbo ou substantivo. Aprendiam mais sobre a vida nesse instante do que haviam aprendido com a inacabável solidão, a qual havia lhes ensinado apenas a ser quem eram, sem medo. Mas agora não caiam sozinhos e logo se viram tomados de ansiedade. A inquietação da responsabilidade de estar com alguém com o qual não temos o poder do controle. Estavam se conhecendo, admiravam-se e guardavam cada detalhe, sentido, aprendizado e feição em suas memórias, lapidavam uma história que se repetia com cada gesto que o outro lhe cedia. – Era você que me seguia? Que me assustava de noite? Foi por sua causa que eu caí. Ou fui eu quem te empurrou? Ficaram plenamente gratos um pelo outro. Assim como os nossos músculos enfraquecem quando não os utilizamos aos poucos todas as capacidades perceptivas desapareceram. Eles planaram por tanto tempo naquele estado alienado que já não podiam mais ouvir, ver, cheirar ou mesmo sentir como deveriam. Deixavam de ser planadores para tornarem-se fenômenos. E por que eram ingênuos, desconheciam o fato de que fenômenos eram efêmeros. Aos poucos, foram tornando-se inertes e não entenderam quando seus corpos gentilmente se afastaram. Já não podiam compreender ou sentir mais nada quando voltaram a despencar. Caiam cada vez mais distantes e mais inúteis, ignorantes ao fato de estavam alheios a tudo, a parte um do outro, porque no percurso da queda haviam perdido a si próprios.
A Casa da Montanha – Terceira Etapa
A família se reunia à mesa, a senhora terminava de servir os pratos com batatas, o senhor taciturno escondia-se por trás de um jornal que lhe dava o conforto de seus próprios pensamentos, enquanto as duas meninas disputavam uma boneca por debaixo da toalha de pano trocando risadas controladas – algumas risadas ousavam escapar os lábios bem treinados ganhando como prêmio o vislumbre do olhar repressivo do seu pai. A mãe colocou-se a postos e todos fecharam os olhos e oraram juntos em silêncio. O estalar da lenha ardendo no fogão encontrou o barulho da água atrapalhada por entre as pedras do riacho, na beira do qual o casarão se encontrava. Os garfos já estavam em movimento quando três batidas na porta romperam o silêncio. O senhor levantou-se bufando enquanto a senhora dizia para si mesma “eu achei que tinha ouvido um cavalo, meus ouvidos nunca me enganam”. As meninas olharam-se e sorriram, eles não recebiam muitas visitas, com exceção dos vizinhos que eram quase tão arcaicos e decrépitos como as tábuas de madeira que agora rangiam com as pegadas fortes do senhor. “Salve”, disse o visitante ao ver a porta aberta. Parado com duas malas de couro grandes, uma em cada lado, o jovem vestia um sobretudo pesado, botas até o joelho, um chapéu papakha de lã negra, típico do Caucasus, que lhe fazia parecer muito mais alto do que era e óculos ovais suficientemente largos para cobrir os seus grandes olhos de boi. A sua voz era melancólica, mas o tom era presente e aveludado, nunca tímido. Apresentou-se sem pressa, com um sotaque desconhecido. Disse que era um caixeiro e vinha de longe, pelo que se sabia, nasceu mesmo na estrada e desde que se entendia por gente já era comerciante, vendendo bugigangas por onde passava. Trazia materiais e iguaria de lugares exóticos, objetos e pequenas máquinas únicas e diversas comodidades para todas as idades. Ele terminou dizendo que seu maior tesouro era de fato, suas histórias, apontando para sua cabeça e perguntando se poderiam lhe fazer a gentileza de lhe ceder alguns momentos. As meninas estavam com os olhos arregalados de curiosidade e olhavam com ansiedade para o senhor enquanto a mãe resmungava algo sobre as batatas esfriarem. “Ah que diabos, então entre logo que a comida está esfriando, junte-se a nós na mesa” disse a senhora com um sorriso forçado. O pai olhou-a com surpresa, mas acendeu ao convite. Na verdade lhe fazia falta a conversa com um homem. O caixeiro sorriu em agradecimento, ele não costumava chegar na hora da janta por acaso. A atenção agora voltava para a mesa, mas com a adição de um homem muito exótico para a tradicional família, que não costumava muito trocar ideias. O pai interrompeu a extensa troca de olhares cruzados perguntando o que trazia o homem a essas bandas. “Estou rumando ao pico-alto (o casal entreolhou-se por um segundo), este é só mais um dos meus destinos, meu caminho quem planeja não sou eu. Eu vou de um objeto até outro, de encontro a encontro. Há tempos, que venho rumando ao norte. Um rapaz me disse que por essas bandas encontraria alguém interessado em uma de minhas mercadorias e que poderia encontrar outras raridades por lá. As batatas estão divinas, muito obrigado.” “É mais fácil você encontrar pessoas raras do que raridades, te digo isso! O alto-pico é conhecido por gente excêntrica e particular, não se é recomendado passar muito tempo por lá, não, pois a loucura é contagiosa.” Disse o pai em tom irônico. “E também por causa da cigana aposentada!” deixou escapar a menina mais nova, tapando a boca com as mãos. “Não dê ouvidos à menina, são estórias, mas apenas estórias de crianças”. Mas o caixeiro sabia que as estórias de crianças eram as mais importantes e pediu para ouvir o que a menina sabia. A senhora tomou a liberdade de contá-la:
Há uma flor na nossa montanha, ela se chama Edelweiss. Uma única flor simples e branca que vive lá no topo. Ela nunca perdeu as suas pétalas e dizem que já estava lá quando os primeiros colonos chegaram ao norte. Ela tem as suas raízes profundas espalhadas por toda montanha, assim ela sempre sabe o que está acontecendo na sua terra. Apesar das nuvens as suas pétalas delicadas sentem o ar que vem lá de baixo, tremendo em resposta a qualquer agito que venha de longe e também ao sussurro do frio que desce do espaço. Ela está sempre conectada, com tudo e com todos. Ela é a união do céu e da terra, nasceu quando a terra estendia os lábios para beijar a estrela cadente que vinha como um presente do céu. Quando jovem era um pássaro, que voava livre pelo norte, trazendo a mensagem de amor da terra para as estrelas. Com o tempo, cansado de ser um mensageiro para um amor que não era seu o pássaro perdeu as asas e virou uma cigana de lindos cabelos brancos, longos e espessos que rondava a procura do seu próprio amor. O que aconteceu ninguém sabe, mas dizem que ela nunca encontrou seu amor, cansou de andar sem rumo e aposentou-se no topo da montanha como flor, resignada ao seu propósito escrevia mensagens sem parar, mas não mais às estrelas, mas as pessoas lá embaixo, na esperança de que alguém lhe fosse resgatar o destino.
Ao terminar o jantar ele abriu sua mala e deu de presente uma nova boneca para cada menina e um saco de tabaco oriental para o senhor, para a senhora um chá que prometeu ser magnífico, mas sugeriu que não o ingerisse em grandes quantidades, já que poderiam ficar um pouco “confusos”. Ainda vendeu uma corda elástica para o senhor usar na sua oficina e um moedor de ervas para a cozinha (e alegria) da senhora. Dormiu no pequeno casebre de madeira do outro lado do casarão a convite do casal e voltou a estrada no primeiro cantar do galo, quando as plantas ainda estavam brancas do orvalho e o cavalo bêbado de sono. Montou no animal e enquanto rumavam contra os raios de sol abriu sua pequena bolsa e retirou um lenço de seda bordado com uma montanha particular. Chegava o seu próximo destino. O caixeiro passou o vilarejo para abastecer e seguiu a jornada em direção as montanhas, que se tornavam mais imponentes a cada quilômetro de viagem. Logo a estrada estava espremida entre os braços do pico-alto. Deixou o cavalo pastar livre em um lugar seguro, escondeu as malas nas pedras e seguiu à pé com uma mochila nas costas. Por quanto tempo subiu não sabia. Pode ter sido por uma vida inteira. Ao longo da subida foi envelhecendo, sua barba ficando mais branca, suas costas encurvadas pela gravidade. A neve lhe cobria os joelhos, mas continuava sempre com o mesmo ritmo, só parando para descansar e comer. Em uma das paradas encontrou um envelope envelhecido por entre a neve. Tinha o selo da montanha. Seu coração bateu forte, estava chegando. Abriu a carta e leu:
Prezados cidadãos do pico-alto, convido-os cordialmente ao meu baile primaveril, venham com máscaras, bom humor, mas sem ressalto. Ao primeiro sinal do eclipse lunar, do singelo ao senhoril. Sem muito mais, M. A. Edelweiss.
Sentiu um aperto no peito e assim apressou o passo. Estava cada vez mais velho e não poderia mais perder tempo. Logo mais encontrou um novo envelope, esse parecia mais conservado:
Prezados senhores e senhoras, hoje os pássaros virão me visitar, pois os vejo daqui e todos aí embaixo estão ocupados com suas vidas, seus problemas, suas economias, suas expectativas e respectivas frustrações sem ter tempo algum de apreciar a beleza dos nossos queridos mensageiros. Não há problema, só venho por essa me desculpar, já de antemão, pelo distúrbio que a visita que recebo vier lhes causar. Hoje não haverá beija-flores nos seus jardins, nem sabiás nos seus campos, não haverá bem-te-vis nas árvores, nem pombas nos telhados. Estarão todos aqui comigo. Mas não se preocupem, caros cidadãos, os pássaros não são animais muito sociais e penso que logo voltarão. Assim, amanhã o pico-alto novamente terá sua melodia de volta. Que o silêncio lhes seja útil. Sem muito mais, M. A. Edelweiss
O velho caixeiro sorriu e guardou a carta na bolsa. Um pouco mais e o caminho todo ficou completo de envelopes e quase não se via mais a neve. O tempo começou a abrir e até mesmo esquentar. A subida parecia mais leve. Abriu mais um envelope, dessa vez com arrepios:
Caro senhor, serei breve, sei que já caminhaste por tempo demais e estás cansado. Há muito tempo perdi algo que me era muito amado. Se ainda o tiveres, o trocarei por um propósito. Necessito a esperança e sei que a carrega consigo. Não é por isso que subiste até aqui? Sem muito mais, M. A. Edelweiss
Ao terminar de ler a carta avistou fumaça. Ela vinha de uma chaminé que, de longe, parecia uma casa de bonecas. Havia chegado ao topo. Lá estava ela: sentada em um grande cristal azul, meditava no topo da montanha, no jardim na frente da casa cor-de-rosa, de frente para as nuvens. Os cabelos brancos balançavam ao vento que subia da encosta.
“Marina?” “E o viajante finalmente chega ao seu destino!” Diz a cigana, levantando-se devagar. “Como sabes o meu nome?” “Uma vida na montanha, é uma vida de aprendizado”. Ela o convidou para tomar chá à beira da cachoeira. A água se desprendia das pedras e caia por entre as nuvens. Ele retirou o chapéu revelando os cabelos brancos. “Edelweiss, é verdade que você é filha do céu e da terra?” “Caixeiro, é verdade que você nasceu da estrada?” Ficaram em silêncio. “Sabe, eu tenho algo que lhe pertence”. Estendeu à cigana o lenço de seda bordado com o símbolo da montanha. Ela o segurou entre as mãos, o cheirou sem pressa e com prazer, de olhos fechados sorriu: “ah, sim esse lenço um dia foi meu, mas era uma parte minha que sempre andou contigo, assim te acompanhei até aqui, viajante. Quando um dia cansei de caminhar e de te buscar, deixei o lenço para trás, na esperança que ele te guiasse até mim. Claro que sempre soube que isso poderia demorar, por isso, me coloquei a escrever cartas. Quando escrevia o tempo não mais importava e, assim, logo te veria chegar.”
“Eu venho andando de porta em porta, a minha vida inteira, sem saber o que o destino me guardava, sem saber o que eu sou. Ao subir com paciência até aqui a claridade me encontrou. Nós nascemos perdidos, caímos e nos levantamos, crescemos até encontrar o nosso destino, alguns ficam presos na escuridão, outros se isolam no topo de alguma montanha, mas no fim todos teremos que libertar o nosso destino e esse ciclo pode durar uma eternidade.” “O que você vai fazer agora que chegou aqui?” Ele sorriu. “Vamos descobrir? Quero te libertar, cigana”. Os dois se olharam por um longo momento, entenderam que só restava um caminho para seguir. Aproximaram-se do pico e pularam juntos de mãos dadas. Seus corpos planavam em círculos, parecia uma dança ensaiada. Em plena queda, por entre as nuvens, a voz de cigana ressoava os seus versos favoritos, já com os olhos cerrados:
A energia que roda, A energia que se espalha, É tudo o que respiro, É tudo, é divina! É a coisa mais linda, É a sua companhia, É o seu olhar: A minha luz, A minha escalada, A nossa eterna queda.
2 Comments
Das letras sonoras às letras no papel, o requinte e sensibilidade imperam.
Perfeito André! A sensibilidade e o requinte são as melhores características deste texto e deste escritor lindo que assina. beijos e obrigada pelo retorno!